A que passo avançam as políticas de saúde negra

Desde 2023, o Ministério da Saúde voltou a priorizar a formulação de estratégias para levar o SUS à população negra e quilombola de forma efetiva. Especialistas da área mapeiam e elogiam as medidas – mas ressaltam o “desafio do financiamento”

Especialmente após o surgimento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), no segundo governo de Lula, passaram a surgir no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) diversas iniciativas que pretendem enfrentar as desigualdades históricas que prejudicam o acesso da população negra à saúde no Brasil.  Durante a atual gestão do Ministério da Saúde, o tema voltou a ser prioridade – isto é, se faz clara a intenção de formular novas ações para reforçar a implementação da PNSIPN e melhorar a situação da saúde negra e quilombola. A seguir, dupla de pesquisadores mapeia meticulosamente e analisa o conjunto de decisões, medidas e iniciativas que, desde 2023, buscam oferecer novo fôlego a esses esforços, frisando que há notáveis desafios “para tornar de fato o SUS mais equânime e capaz de realizar todo o seu potencial”. Boa leitura! (G.A.)

Conforme demonstrado nos dois primeiros Boletins Epidemiológicos sobre a Saúde da População Negra (12), publicados em 2023, em geral, os indicadores analisados apontam que este grupo apresenta dados piores que a população branca brasileira. Os dados, alarmantes, são corroborados por centenas de publicações realizadas após a promulgação, em 2009, da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que reconheceu, pela primeira vez na história do país, a existência do racismo institucional.

A criação da Política foi uma conquista dos movimentos sociais e sua implementação, ainda que de forma bastante limitada, devido principalmente ao racismo estrutural, tem contribuído para a redução das iniquidades através da melhoria de alguns indicadores como a mortalidade materna e as taxas de vacinação entre a população negra. 

Embora somente em 2017, através da Portaria GM/MS no.344, tenha sido instituída a obrigatoriedade do preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde, a medida representou um avanço importante para se ter dados oficiais sobre as disparidades raciais em saúde no país. No governo atual, uma nota técnica retirou a opção “99 – Sem informação” dos formulários eletrônicos do Sistema Único de Saúde (SUS), contribuindo para aumentar a qualificação das informações nos sistemas de saúde.

Após a criação da PNSIPN, no segundo governo Lula, o Ministério da Saúde (MS) e o CNPq passaram a financiar pesquisas em âmbito nacional voltadas para a saúde deste segmento populacional, que têm permitido conhecer melhor os impactos do racismo na saúde. Em 2022, pela primeira vez, a população quilombola foi incluída no Censo Nacional, e em 2023, em preparação para a 17ª Conferência Nacional de Saúde, foram realizadas a 1ª Conferência Livre Nacional de Saúde da População Negra e a 1ª Conferência Livre Nacional de Saúde Quilombola, cujas propostas foram majoritariamente aprovadas na 17ª. Por isso, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) incluiu na sua Resolução 715/2023, a necessidade de implementar uma Política Nacional de Saúde da População Quilombola (PNASQ).

Após uma audiência histórica durante o encontro Aquilombar, em Brasília, a Ministra Nísia Trindade se comprometeu a criar um grupo de trabalho para construir a política, o que foi feito através da promulgação do Grupo de Trabalho de Saúde Quilombola ‘Graça Epifânio’ – GTESQ, para “contribuir para a produção de informações afetas à formulação, implementação, monitoramento e avaliação de ações, programas e políticas voltadas à saúde da população quilombola, garantindo a participação social em todo o ciclo da política pública” (Portaria GM/MS no.5.794/2024).

Logo ao assumir, a ministra criou a Assessoria para a Equidade Racial em Saúde, diretamente ligada ao seu gabinete, e designou o Prof. Dr. Luis Eduardo Batista, uma respeitada liderança do movimento negro, para o cargo. Desde que foi empossado, ele e sua equipe têm conduzido diversas iniciativas nacionais e internacionais para promover a equidade racial na saúde, como o Encontro Nacional de Equidade no Trabalho e Educação no SUS, a Oficina Técnico-Científica sobre Mudanças Climáticas, Saúde e Equidade, e o Seminário Saúde sem Racismo. Sob o comando atual, o MS tem colocado a promoção da equidade como parte fundamental da Política de Atenção Primária à Saúde (APS), a porta de entrada do SUS, que é a única forma de acesso à saúde para a maioria da população negra.

Determinantes sociais em vista

Considerando que a saúde é dependente de diversos Determinantes Sociais, o governo federal também tem construído políticas transversais e interministeriais para a promoção da equidade étnico-racial no seu Plano Plurianual (2024-2027), como o Aquilomba Brasil, o Programa Federal de Ações Afirmativas.

Soma-se a essas políticas a Estratégia Antirracista para a Saúde (Portaria GM/MS nº2.198/2023), instituindo as prioridades do governo, que incluem: atenção integral à saúde da mulher negra, atenção à saúde materno-infantil, com foco na redução da mortalidade, políticas públicas de saúde mental, considerando as particularidades de cada grupo étnico, educação em saúde antirracista, promoção da saúde sexual baseada na diversidade étnico-racial, atenção integral a pessoas com doença falciforme, representatividade étnico-racial entre os colaboradores do MS e respeito à diversidade cultural e religiosa. 

Adicionalmente, o governo federal organizou o Plano Operativo sobre Saúde Quilombola, criou o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça, Etnia e Valorização das Trabalhadoras no Sistema Único de Saúde, implementou o Painel de Monitoramento de Equidade em Saúde, o Observatório de Saúde da População Negra, implantou o Comitê Técnico Interministerial de Saúde da População Negra (Decreto 11.996/2024) para “monitorar a PNSIPN, promover o desenvolvimento e implementação de indicadores, pesquisas, propor diretrizes e outras medidas, para a redução das iniquidades raciais”, 

Além disso, o governo também incluiu a Doença Falciforme na Lista Nacional de Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública e aprovou um novo protocolo clínico e diretrizes para o tratamento da doença, para melhorar a atenção nos serviços e a qualidade de vida de milhões de pessoas e instituiu no âmbito do Ministério da Saúde, um Grupo de Trabalho Nacional para organizar a linha de cuidado para pessoas com albinismo (Portaria GM/MS Nº 5.703/2024).

Ampliar a participação nas políticas

No segundo semestre de 2024, o governo federal e a ENAP promoveram o Webinário Promoção da Igualdade Racial como Veículo para o Desenvolvimento dos Municípios Brasileiros, como forma de incentivá-los a aderir ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), sob a responsabilidade do Ministério da Igualdade Racial (MIR), visando institucionalizar o compromisso municipal com ações antirracistas. 

Além disso, foi apresentado o Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde, e foi lançado o inquérito nacional para o diagnóstico da PNSIPN nos municípios, que foi desenvolvido com apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O inquérito, o primeiro levantamento nacional oficial sobre a política, foi feito através de um questionário virtual abordando cinco eixos: o perfil sociodemográfico, o conhecimento sobre as diretrizes da PNSIPN, os aspectos organizacionais, as informações sobre a implementação da política, e informações sobre formação, informação, qualificação e disseminação da política na gestão.

Em setembro, foi lançado o primeiro edital para a seleção de apoiadores estratégicos para a implementação e acompanhamento da PNSIPN nos estados e no DF, visando construir uma rede para contribuir com as secretarias estaduais e municipais na construção e consolidação da política, e para fomentar a criação de equipes técnicas voltadas para o desenvolvimento de ações de equidade étnico-racial nos estados. 

Adicionalmente, segundo o MS, visando fortalecer a adesão à política, para aumentar as ações para a promoção da equidade étnico-racial por todo o país, foi lançado um projeto de investimento de 32 milhões de reais nos próximos três anos, a ser executado em nível nacional com o apoio da Fiocruz.

Apoio aos territórios

O compromisso de provimento de profissionais para atender às áreas mais vulnerabilizadas, como as terras indígenas e as áreas quilombolas, foi reforçado através do Programa Mais Médicos (PMM), que passou a oferecer vagas específicas por meio de um sistema de cotas. De acordo com o edital de 2024, o programa prevê provimento de médicos para equipes de saúde da família (eSF), equipes de consultório na rua (eCR) e equipes de atenção primária prisional (eAPP).

20% das vagas foram reservadas para grupos étnico-raciais, incluindo quilombolas, negros e indígenas, e também 9% para pessoas com deficiência. A distribuição das vagas por município favorece que os médicos dos grupos minoritários possam ir para suas áreas de origem, se assim o desejarem.

Considerando as especificidades das populações quilombolas e a importância do território para a sua saúde e bem estar, o governo federal declarou de interesse social, para fins de desapropriação, os imóveis rurais abrangidos por dezenas de quilombos, em diversos estados. 

No mês de novembro também promulgou o Programa Rotas Negras (Decreto Nº 12.277, de 29/11/24), que tem por finalidade impulsionar o afroturismo, promover o desenvolvimento sustentável das comunidades negras e valorizar a cultura afro-brasileira em nível nacional e internacional, e instituiu a Política Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro e de Matriz Africana (Decreto Nº 12.278/2024).

Incentivo à formação

Para os universitários, o MS lançou o Programa Nacional de Apoio à Permanência, Diversidade e Visibilidade para Discentes na Área da Saúde – AFIRMASUS, visando apoiar a permanência nas Instituições de Ensino Superior públicas de estudantes cotistas, através do desenvolvimento de ações de ensino, pesquisa, extensão e cultura com recorte de gênero, raça e etnia (Portaria GM/MS nº 5.803/2024). 

Já no finalzinho do ano, foram lançados mais duas iniciativas para contribuir para a melhoria da saúde e da qualidade de vida da população negra, o Programa Nacional de Vivência no SUS (Portaria GM/MS nº6.098/24) para fortalecer a formação profissional e a participação social inclusiva, e o Painel da População Negra, outra demanda dos movimentos sociais, que apresenta dados coletados continuamente relacionados a três eixos: enfrentamento ao racismo, características sociodemográficas, e morbidade e mortalidade da população negra.

Do ponto de vista da sociedade civil, além de ter chamado diversos quadros do movimento negro e quilombola para contribuir na gestão federal, o governo tem estado aberto ao diálogo com as entidades. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), através do GT Racismo e Saúde e a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), via Área Científica de Saúde da População Negra, juntamente com a CONAQ, a Aliança Pró-saúde da População Negra e outras organizações do movimento negro, têm conseguido pautar substancialmente os debates sobre os impactos do racismo na saúde em diversos fóruns governamentais, acadêmicos e sociais.

Esse diálogo também se dá na implementação da temática nos cursos de graduação e pós-graduação na grande área da saúde e na saúde coletiva, bem como na formação dos servidores da saúde via UNASUS. No começo de 2025, o MS avançou na construção da PNASQ, lançou a consulta pública sobre a política e iniciou a construção de instrumentos para formação dos profissionais e agentes de saúde sobre a política via UNA-SUS.

Um balanço positivo, mas um cenário desafiador

Na atual gestão Lula, o governo tem se empenhado significativamente para reduzir as iniquidades em saúde e responder às demandas do Movimento Negro. Como parte do processo, alguns estados têm criado os seus próprios Estatutos da Equidade Racial, editais de financiamento específicos para estudos sobre a saúde da população negra (SPN), e estados e municípios têm criado Comitês Técnicos sobre a SPN e outras instâncias sobre o tema. A atuação do governo federal serve como catalisador para as ações em nível estadual e municipal.

Para o sanitarista Hésio Cordeiro (1924-2020)m “O SUS é um salto civilizatório”. Já para Sérgio Arouca (1941-2003), um dos idealizadores do sistema, ao fortalecer o SUS “nunca vamos errar o caminho que aponta para a construção de uma sociedade mais justa”. Apesar das dificuldades relacionadas aos frequentes ajustes fiscais, ao teto de gastos, ao contingenciamento de recursos para a saúde, a “pejotização” dos profissionais, a privatização velada através das Organizações Sociais e outros mecanismos, a crescente dependência de emendas parlamentares, que concentram grande parte dos recursos para a saúde, e à intensas campanhas contra a ministra Nísia, o governo federal tem trabalhado na direção certa apontada por Arouca. Desde sua posse, o governo Lula já criou, financiou e implementou um grande volume de iniciativas em prol da saúde da população negra e quilombola.

Atuando através de vários ministérios, notáveis avanços têm sido alcançados no que diz respeito à SPN. No entanto, conforme discutido no recente webinário Apoio Estratégico para a Implementação da Política Nacional de Saúde da População Negra, a implantação da política ainda permanece muito baixa nacionalmente, e apenas cerca de metade dos municípios responderam ao inquérito até novembro. 

Além disso, a experiência geral com os gestores e serviços de saúde em nível estadual e municipal, mostra que há dificuldade na implementação das políticas antiiniquidades, pois o racismo continua a ser um tema tabu entre a maioria dos profissionais, e muitas pessoas têm dificuldade em percebê-lo como um determinante social de saúde. 

Isso demonstra que, apesar dos avanços dos últimos dois anos, continuamos a ter ainda, entre outros, o desafio do financiamento, os desafios políticos, e também um grande desafio do ponto de vista da formação dos profissionais, para tornar de fato o SUS mais equânime e capaz de realizar todo o seu potencial.


Hilton P. Silva é médico, biólogo, mestre em saúde pública, doutor em antropologia, docente da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade de Brasília (UnB), membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e da Área Científica
de Saúde da População Negra da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN).

Ana Leia Moraes Cardoso é quilombola, médica, pesquisadora da SPN, Especialista em Gestão da Qualidade em Saúde e Segurança do Paciente, Ativista do Movimento Negro e Quilombola, Membra do Coletivo de Saúde “Graça Epifânio” da CONAQ, Membra do GT de Saúde da População Negra do Município de Belém, Pará.

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