COMO JOGAR NO LIXO UMA DECLARAÇÃO DE AMOR TÃO BELA?
Por: Fátima Oliveira
Quando se tem uma casa há 37 anos e mora-se na mesma casa há um quarto de século, mesmo não sendo uma pessoa acumuladora de tralhas, há muita velharia guardada, desde coisas sem utilidade, cujo destino deveria ter sido o lixo. Em geral, todo mundo guarda umas coisinhas que nunca joga fora… Umas, úteis, outras, nem tanto.
Muitas inutilidades não são descartadas por não se saber como, a exemplo de lixo eletrônico. Há empresas que dizem que buscam lixo eletrônico em sua casa, mas nunca tive a sorte de encontrar uma. Também nunca tive a cara de pau de mentir para doar lixo para instituições de caridade alegando que funciona! Só computadores velhos imprestáveis, tenho quatro. Como me livrar deles com segurança? “Mãããe, vai enterrar esses computadores velhos com você é?”. É o que ouço sempre que as filhas vêm passear em minha casa. Quem sabe a ideia de enterrá-los comigo pode ser a opção, né?
O que mais guardei são recortes de jornais e também de revistas. São matérias que achei interessante, seja para subsidiar pesquisas ou apenas porque achei belas. Há coisas que, de certeza, jamais relerei; muitas delas nem sequer sei que possuo. De modo que há um mundo a desbravar em meus guardados. De vez em quando, hoje em dia com uma raridade cada vez maior, brota uma coragem e faço uma limpa, mas sempre sobra muitas coisas, das quais não tenho coragem de me livrar…
Na semana passada, numa dessas “limpas” de coisas inúteis, numa madrugada insone, reencontrei o anúncio abaixo, recortado de uma página fúnebre do “Jornal do Brasil”, que, pela beleza da declaração de amor que expressa, reli com emoção e… guardei novamente:
“Rosaly Bloch/ Nunca como hoje, os seis anos que passamos juntos pareceram tão poucos. Obrigado pelo privilégio do seu amor./ Salomon Strozenberg”.
Infelizmente, não recortei com data nem a anotei, logo, não sei o ano em que foi publicado. Tenho a vaga ideia de que foi na década de 90. Intuo apenas que, por ter sido publicado no “Jornal do Brasil”, provavelmente as pessoas citadas residiam no Rio de Janeiro.
Como jogar no lixo uma declaração de amor tão bela? Só a ideia de alguém ter sido amada ao ponto de o amado sobrevivente, mesmo em meio à dor dilacerante da perda, conseguir expressar, num anúncio fúnebre, a imensidão e a beleza de um amor de convivência tão breve (seis anos) que emociona profundamente quem o lê justifica em si mantê-lo em meus guardados.
Desconheço a mulher que não gostaria de ser cultuada como Rosaly Bloch após a morte. Uma amiga, a quem mostrei o anúncio há muitos anos, em meio a risos e lágrimas, disse-me: “Ai, meu Deus, eu até faria vistas grossas, nem ficaria tão zangada com as ranzizices do Ruizinho se soubesse que, quando eu morresse, ele publicaria uma declaração de amor assim… Mas ele não tem o dom da sensibilidade de um Salomon Strozenberg, então, eu vou me livrar dele é hoje, e não só quando eu morrer. Imagina esperar que um tosco como o Ruizinho declare amor assim na hora
de minha morte… Não vale esperar…”.
Acho que ela está esperando, porque continua firme e forte com o Ruizinho, que carrega na carteira um escrito, em formato de testamento, com os dizeres que ele quer que sejam publicados no jornal quando ela morrer… Demais de engraçado, não é?
Indaguei por que ela impôs que ele carregasse aquilo no bolso, se não bastava prometer? Ela: “Vai que ele tem um derrame e vire um vegetal, e eu vou perder o meu anúncio? Não vou arriscar! Não depois de tudo e de tanto tempo, não é Fátima?”.
Fonte: O Tempo