Alguém pode me ouvir?

Oi, tudo bem? Tem alguém aí? Por favor, alguém pode me ouvir apenas 1 minuto? Sabe, é que eu preciso falar. Na verdade, mais do que isso, eu tenho falado por anos, mas parece que ninguém me ouve. Deixa eu te explicar o que está acontecendo. Eu, 19 anos, mina preta, periférica, já passei por diversas coisas, já conquistei várias também. Mas tem uma coisa que me intriga e eu tento, tento, mas não consigo entender.

por Cassia Quezia enviado para o Portal Geledés

Eu tento, de todas as formas, combater o racismo, estou sempre falando, me expressando, mas parece que ninguém me escuta!

Essa não é só a minha realidade, essa é a realidade de muuuuuitos por aí. Então, eu vou tentar, brevemente descrever esse cenário e espero que você entenda que não é mimimi.

A cada 7 minutos um preto morre injustamente no Brasil. 7 entre 10 pessoas mortas pela polícia são negras. A população negra é a mais afetada pela desigualdade social. Somente daqui a 72 anos (2089) pretos e brancos terão a mesma renda equivalente no Brasil. Entre 2003 e 2013 o feminicídio de mulheres negras aumentou, enquanto o de mulheres brancas diminuiu 10%. As mulheres negras também são mais vitimadas pela violência doméstica: 58,68%. Elas também são mais atingidas pela violência obstétrica (65,4%) e pela mortalidade materna (53,6%). De 100 assassinatos no Brasil, 71 correspondem à população negra.

Obviamente, tem muito mais pra falar mas, por hora, vamos ficar com esses dados que eu acredito que é suficiente para entender que o apelo da população negra é mais do que real.

Mas você deve estar se perguntando, o porquê de no começo do texto eu ter dito que queria ser ouvida, pois é…

Depois do caso de ataque racista da nossa pequena Titi, uma coisa me intrigou:  é mais fácil ouvir pessoas brancas definindo o que é racismo, do que pessoas negras narrando o que é passar por isso todos os dias.

Calma, não precisa problematizar! Eu fico muito feliz que isso tenha vindo à tona. Sei que nos trouxe resultados positivos e vimos que muitas pessoas se mobilizaram com o caso.

Mas eu queria também que essa mesma mobilização e eficácia acontecesse com a mina preta da minha comunidade, que passa por isso todos os dias.

Os casos de racismo só tem aumentado, e nem 10% deles é falado na mídia.

Por favor, nos ouçam! Cansamos de ser massacrados pelas palavras de ódio diárias. A população negra equivale à 62% da população total do Brasil. Maior em quantidade, mas os direitos e reconhecimentos lá embaixo.

Será que agora alguém pode me ouvir? Até parece bobagem vir aqui e escrever tudo isso depois de apontar tantos dados. Mas acredite, estamos morrendo lentamente a cada dia e precisamos falar sobre isso. O racismo, o preconceito, eles matam! Me ajude, ajude meus amigos, nos ouçam!

Um trecho do meu poema para finalizar:

“Diz que a escravidão acabou? Mentira. Nos chamam de vitimistas, diz que é mimimi, se eu luto por cotas em um sistema que não me abre as portas. E quando eu entro, me faz sair e diz que aquele lugar não é pra mim. O empresário me esnoba se eu peço sistema de cotas e diz que eu quero tudo na mamata, quando na verdade, é só o preço das chicotadas ardendo nas costas.

De terno e gravata se assusta se algum momento eu solto palavras do vocabulário culto que não é da minha cultura e muito menos é falado na minha rua.

Porque eu vim da periferia, aonde a informação não chega, e quando chega, chega sempre distorcida.

Mas ou me aceitem ou eu vou chegar batendo com os dois pés no peito, e mostrar que preto tem talento”.


“Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.”

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