Eu sou Lorena Lacerda (@lorenlacre): mulher, negra, cis, soteropolitana militante, feminista negra, museóloga de formação, trabalho numa escola Afro-brasileira chamada Escolinha Maria Felipa, localizada em Salvador. Escrevo textos para internet sobre feminismo, antirracismo, estética, moda e política. Amo música e sou colecionadora de vinis. Dentro do universo da cultura do vinil, eu pauto sobre a representatividade das mulheres dentro da cena que, ainda, infelizmente, é muito machista e racista como em qualquer esfera social. Dentro ainda do que eu sou, também exerço o ofício ancestral e político de ser turbanteira. Me construí turbanteira diante do percurso doloroso sobre tornar-se “mulher negra”. Foi um processo de redescoberta das minhas raízes, que passei por transição capilar através das tranças e de buscar referências esteticamente negras. Após assumir os meus cabelos naturais, comecei a buscar possibilidades dentro do universo “cabelo crespo”. A sociedade eurocêntrica, branco-normativa, nos ensinou que a nossa única via de beleza é o cabelo liso. Não é uma escolha, sempre foi uma imposição racista. Alisar o cabelo é uma maneira cruel e determinante de dizer que “estéticas negras não importam”.
Eu sofri muito com os meus cabelos na infância. Alisei. Sofri corte químico. Tive medo de não ter mais meus fios capilares. Até que uma trancista negra me disse: “Por que você não trança seus cabelos? Vai ajudar no crescimento/vai dar um “jeito” até seu cabelo natural crescer novamente” (isso há 14 anos). Enfim, não tive saída e trancei. Mas, não trancei porque estava consciente de que era para valorizar minha estética negra e de que eu era uma mulher negra. Eu nem sabia que eu era uma mulher negra. Por ter uma pele clara ou menos escura, eu não me enxergava enquanto pessoa negra. Eu sempre ouvia, inclusive, de que eu não era negra por parte da minha família (interracial) e de várias pessoas da sociedade. Mas, o meu cabelo crespo me ensinou a quão negra eu era. Ouvir que meu cabelo era “duro” me ensinou através da dor quão negra eu era. Eu apenas queria me livrar daquela vergonha de estar com meu cabelo todo quebrado de química, da vergonha de que seria enfrentar as pessoas com o cabelo todo detonado. Eu estava sem autoestima alguma. Na verdade, hoje, eu vejo que minha autoestima na infância e adolescência era bem baixa. Eu me achava feia. As pessoas me achavam feia. Porque elas não reconheciam pessoas negras, de cabelos crespos, como pessoas bonitas. As meninas negras que estavam próximas a mim também alisavam seus cabelos e elas também se auto odiavam porque a sociedade racista as odiava. Então, atendi a “saída” da tracista e coloquei trança. No início eu não gostei tanto, me achei estranha, depois fui me acostumando, recebendo alguns elogios, o que me fez continuar com a missão de “dar um jeito” naquele cabelo. Foi passando o tempo, eu comecei a amar as trancinhas e vi várias possibilidades de usá-las: longas, coloridas, curtas, loiras, vermelhas. Mas, eu tinha medo de tirar aquelas tranças e encarar a sociedade com o meu cabelo natural, que estava crescendo muito como uma árvore bonita. Eu não sabia que o medo sobre despir a minha cabeça das tranças era relacionado a negação. O medo que eu sentia era sobre racismo. As amarras racistas faziam com que eu desejasse ter um cabelo liso, me auto odiasse e negasse as minhas características que me fazem mulher negra.
Havia dias que eu ficava sem trançar meus cabelos por algum motivo: às vezes a trancista estava cheia de clientes e não podia me atender; algumas vezes a grana estava curta para atualizar as tranças. Eu só sei de uma coisa: quando estava com meus cabelos naturais, eu não saía de casa para nada e sempre inventava alguma desculpa para não ver ninguém que não fosse minha mãe e meu pai. Isso porque eu tinha vergonha do meu cabelo da forma que ela era, da textura e, logicamente, eu estava negando a mim mesma e as minhas raízes.
Eu frequentava o circuito do rock/cena alternativa de Salvador (Rio Vermelho) que era majoritariamente branca. Na maioria das vezes, eu era a única menina negra nos espaços de pequenos shows e encontros da galera. Lembro que, uma vez, minha melhor amiga me ligou chamando para sair (eu nem sei se ela se lembra disso) e eu disse que não ia porque não estava afim, e ela, de alguma forma, matou a charada: “você não quer ir porque não trançou o cabelo, né?” E eu toda sem graça disse que não era bem isso (sendo que lá dentro eu sabia que essa era a razão sim). Então, ela disse: “Por que você não vai com seu cabelo natural? Deve estar lindo.”
Bom, eu cedi. Ouvi minha amiga e disse para mim mesma: “vou enfrentar o mundo do jeito que eu sou.” E foi a melhor coisa que fiz. Fui com medo, com receio dos olhares, insegura, mas fui assim mesmo. Acredito, também, que o meio influência muito as nossas inseguranças relacionadas a nossa estética. Quando vi minha amiga, ela me elogiou muito. Lembro da primeira saída que fiz com meu cabelo crespo e todas as minhas amigas me elogiaram. Elas podiam até não saber, mas cada elogio que elas direcionaram para mim importaram para me tornar quem sou hoje, e muito! Numa sociedade onde mulheres negras nunca são elogiadas, reconhecidas como bonitas, onde não nos vemos nas capas de revistas com reconhecimentos positivos, é muito difícil construirmos auto amor sobre nós. Depois daquele dia, eu me vi sem tranças de fibras e sem aprisionamentos. Porque sim, as tranças, naquele momento, estavam sendo uma forma de esconder os meus fios. Hoje eu uso tranças, mas as considero de uma outra maneira, pois tenho um grau de consciência e afirmação relacionada a minha negritude. Hoje eu entendo que as tranças são possibilidades afirmativas da estética negra e não um esconderijo. E o que me fortalece, ainda mais, é saber que sou cercada de muitas mulheres negras/feministas negras orgulhosas de si mesmas e com muita autoestima. Ao reconhecer os meus cabelos crespos, como potencialmente bonitos, eu descobri os turbantes como possibilidade de beleza e afirmação da minha negritude; eu redescobri as tranças com uma outra vertente e, dessa vez, de liberdade. Os turbantes também me libertaram e libertam a cada modelo que construo na minha cabeça. Eu intitulo as minhas oficinas como “Turbantes: Amarr(ações) que trazem liberdade”. Os turbantes só atravessaram o meu caminho porque reconheci a minha primeira coroa, que é o meu cabelo crespo. A estética dos turbantes me ensinou que toda mulher negra carrega o sentido importante de uma coroa porque são potencialmente capazes de erguer a cabeça e honrar sua própria realeza. E eu estou cumprindo o meu legado de inspirar que mais meninas e mulheres negras ergam suas coroas junto comigo!