Autonomia e reconhecimento na mira: corte de verbas nas universidades ataca diretamente estudantes mais pobres

O Ensino Superior Público brasileiro neste momento reflete o poema consagrado de Drummond e as pedras no caminho. Essa realidade é cotidiana, visto que, desde o início da gestão do Governo Federal que ainda está em posse da administração do país, o alvo se tornou a Universidade. Especificamente, os estudantes mais pobres que ingressaram na Universidade pós ações afirmativas.

Nas palavras finais da sua gestão como Reitor da Universidade Federal da Bahia, o Professor Dr. João Carlos Salles já apresentava a visão “tacanha” de governantes que enxergavam a Universidade como qualquer repartição pública qualificada pelos fatores gerenciais e eficientistas. Observava o professor que o atual governo, no estrangular da Universidade com seus cortes, contingenciamentos, visa instaurar um sentimento de desalento, buscando a todo tempo mitigar a autonomia.

Autonomia é uma palavra importante para analisar ao atual contexto das Instituições de Ensino Superior. Nessa toada, lembro-me das leituras de Paulo Freire, quando o mesmo propõe um olhar afiado para a pedagogia da autonomia, alertando que não há docência sem discência, evidenciando o caráter plural e diverso do ensino superior. Também reflito muito sobre as leituras de Alain Coulon quando ele aponta “o desejo de abandonar” a partir de uma análise dos processos de afiliação dos estudantes.

Um ponto chave em ambas as leituras é que a autonomia não carrega apenas um sentido individual do ser, mas uma identificação coletiva que opera toda a construção de uma Universidade. A autonomia universitária deve ser defendida porque na sua composição atores dotados de autonomia interagem entre si e produzem conceitos, arte, filosofia, ciência. Sem autonomia, não há Universidade.

E aqui encontra-se o dilema orçamentário e o investimento na Educação no Ensino Superior. Inicialmente, observa-se que o uso da palavra investimento por si só já aponta um caminho de leitura para educação que destoa dos aspectos do que Foucault chamará de governamentabilidade, afinal como o próprio autor apontou, “O governo é definido como uma maneira correta de dispor as coisas para conduzi−las não ao bem comum, como diziam os textos dos juristas, mas a um objetivo adequado a cada uma das coisas a governar.”

Ou seja, não será tão incomum que os atuais governantes dentro de um projeto neoliberal, fascista e obscurantista, enxergue os investimentos na Universidade como um “GASTOS”. A questão é que esses “gastos” aos olhos destes governantes que ainda estão com a caneta no Brasil impactam diretamente na autonomia da Universidade e na permanência dos estudantes. Afinal, quando os cortes e contingenciamentos atingem orçamento e o empenho das Universidade, quem sofre é o principal ativo da educação pública: as pessoas.

Talvez, pela não compreensão disto, que projetos como future-se e outros foram ensaiados para mitigar a autonomia da Universidade e propor uma educação bancária, eficientista que não funciona com a natureza do ensino superior público brasileiro que é por si mesmo, crítico. Além da autonomia, o atual ataque à educação pública é também um ataque ao reconhecimento.

Com o advento das ações afirmativas, fruto do que Nilma Lino Gomes chamará de tempos de lutas, a Universidade Pública brasileira foi “pintada de povo”, se tornando mais diversas, abrindo possibilidades para novos encontros epistêmicos e produções cientificas a partir de novos sujeitos em busca de reconhecimento. Com essa guinada, o ensino superior tem se renovado cada vez mais. Mas o dilema não se encontra apenas no acesso, mas sobretudo, na permanência.

Não é incomum relatos de abandono do curso nas Universidades por questões econômicas ou sociais. Pessoas pobres, negras, indigenas, mulheres e PCDs passam por uma série de dificuldades para a sua manutenção nos cursos de ensino superior por variações complexas de relações sociais e necessidades materiais para a manutenção da permanência. Quando o governo promove o corte na educação superior e nas Universidades, não inviabiliza apenas o funcionamento da Universidade, mas a manutenção da permanência de muitos estudantes.

Além disso, é necessário observar o quanto é prejudicial para a própria economia do Estado investir anos para um estudante acessar e permanecer na educação superior e devido os cortes, atrelado a impossibilidade de permanência, este estudante abandonar o curso. Quando o Governo Federal ataca a educação, está atacando o próprio Estado brasileiro que está perdendo os seus investimentos no potencial presente e futuro de um país que necessita de mão de obra qualificada e atualizada.

Referências:

SALLES, João Carlos. Uma Palavra Final – discurso do reitor João Carlos Salles na Cerimônia de Encerramento da Gestão 2014-22. UFBA em pauta, 2022. Disponível em: https://ufba.br/ufba_em_pauta/uma-palavra-final-discurso-do-reitor-joao-carlos-salles-na-cerimonia-de-encerramento Acesso em: 08 de dezembro de 2022.

FREIRE, Paulo . Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: EDUFBA, 2008.

GOMES, N. L (2017). O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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