Nossas histórias, a história da gente negra está recheada de personagens que aos poucos se tornam cada vez mais visíveis e cujas ações revelam seu compromisso com as demandas sociais negras marcadas temporalmente. Adentrar essas histórias é desfiar um novelo em que se desvelam tantas e tantas outras trajetórias de mulheres e homens negros, e desnudam a forma com que perseguiram a liberdade e a igualdade. Desfiando esse novelo ao adentrar o acervo documental do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros (Ipeafro), emergiu a figura de Aguinaldo de Oliveira Camargo. Amigo de Abdias Nascimento, Camargo teve uma trajetória pouco conhecida envolvida por militância, arte e educação. Encarnava as multifaces de um ativismo que reconhecia ser o teatro, o jornalismo e a educação estratégias fundamentais para combater o racismo e alcançar a igualdade da gente negra.
Em 8 de maio de 1945, a peça Imperador Jones estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. De autoria do escritor americano Eugene O’Neil, que autorizou a montagem do espetáculo, além de outros textos que seriam posteriormente encenados pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), a peça foi dirigida por Abdias do Nascimento e interpretada pelo grupo de atores e atrizes daquela que posteriormente seria considerada mais que uma companhia negra de teatro e que Camargo foi um dos seus fundadores e membro atuante. A peça Imperador Jones foi o primeiro de uma série de espetáculos do TEN nos teatros do Rio de Janeiro e que Abdias do Nascimento resumia como resultado da “experiência do negro no mundo do branco, onde, depois de ter sido escravizado, libertam-no e o atiram nos mais baixos desvãos da sociedade”.
Os jornais da cidade destacavam a atuação de Aguinaldo Camargo no papel principal do personagem Brutus Jones, em grande medida emitindo críticas controversas. A negação do racismo vislumbrava a ideia de um teatro negro com desconfiança; e, alicerçada pelo mito da democracia racial, parte da sociedade brasileira questionava a necessidade de um teatro negro, conforme o artigo “Teatro de Negros”, publicado em O Globo na coluna “Ecos e Comentários” de 17 de outubro de 1944, reproduzido no livro Testemunhos, organizado por Abdias do Nascimento.
Entre os argumentos do texto, lemos: “Sem preconceitos, sem estigmas e em fusão nos cadinhos de todos os sangues estamos construindo a nacionalidade e afirmando a raça de amanhã. Falar em defender teatro de negros, é o mesmo que estimular o esporte dos negros, quando os quadros das nossas olimpíadas, mesmo no estrangeiro, misturam todos, acabar criando as escolas e universidades de negros, os regimentos de negros e assim por diante”.
Vez por outra, colocava-se em questão a qualidade dos atores e atrizes. Não por acaso as opiniões sobre a atuação de Camargo variavam entre a comparação de sua performance teatral com o do ator americano Paul Robeson rebaixando o ator brasileiro, e os elogios e surpresa quanto a potência de Camargo em sua interpretação do personagem principal do espetáculo.
O ator que o TEN revelou nos palcos encenando ainda as peças Terras dos Sem fim, de Jorge Amado; O filho pródigo, de Lucio Cardoso, entre outras montagens também atuou na companhia de teatro negro liderada por Nascimento dirigindo a peça Todos os filhos de Deus têm asas. A atuação de Aguinaldo Camargo nos palcos ainda o levou para telas do cinema ao lado de Ruth de Souza e Grande Othelo em Também somos irmãos, filme de 1949 dirigido por José Carlos Burle.
Mas as ações de Aguinaldo Camargo por trás do teatro eram só algumas das faces de uma militância que usava o palco para levar a denúncia e a conscientização sobre os dramas e a situação da população negra naquela primeira metade do século XX. Em paralelo às atividades de interpretação e direção das peças, o advogado Aguinaldo Camargo lecionava Iniciação à Cultura Geral para um dos cursos organizados pelo TEN, e que reunia em seu quadro de alunos e alunas empregadas domésticas, operários, funcionários públicos, entre outros. O curso de alfabetização, por exemplo, chegou a contar com seiscentos inscritos, segundo Abdias do Nascimento.
A atuação de Camargo revela questões que tomavam a intelectualidade negra daqueles anos de 1940. Seu compromisso político incluía a educação como motor de inclusão da população negra na sociedade brasileira. Aliás, a inserção social de negros e negras mobilizava o pensamento de um ativismo que encontrava também na imprensa negra um veículo de expressão. Camargo, então, imerso nas formas de ação política de seu tempo, também usava as páginas dos jornais para refletir e compartilhar sua compreensão sobre a situação da população negra.
Em janeiro de 1946, escrevendo no jornal A Senzala, argumentava a favor da urgência de uma unidade entre os negros sugerindo: “O elemento negro do Brasil de hoje deve unir-se, imediatamente, no sentido psicológico, para atacar de frente o preconceito de cor e da raça que ainda perdura em nossa Pátria. Essa união, entretanto, em nada vem ferir a unidade nacional. Ao fazer-se tal união, não se está fazendo racismo político, que já foi repudiado do consenso da nacionalidade em vários manifestos das sociedades culturais da pátria. E depois, seria utopia pensar que com a união do afro-brasileiros se criará no Brasil o vírus do separatismo racial”.
O ativista que se revelou ator pela necessidade em teatralizar os dramas da gente negra no Rio de Janeiro dos anos 1940, parecia então compreender que somente pela unidade e mobilização seria possível refletir e encontrar saídas para as questões que assolavam a população negra naqueles momentos do pós-abolição vividos na década de 1940. Camargo vinha de uma trajetória de militância em um tempo em que as mobilizações e o ativismo eram coibidos pelo governo Vargas entre 1937 e 1945.
Natural de Franca, Camargo mudou-se para Campinas, onde conheceu Abdias Nascimento, e juntamente com Geraldo Campos de Oliveira, organizou o Congresso Afro-Campineiro em 13 de maio de 1938 no Centro de Ciências Letras e Artes (CCLA), evento que buscava discutir a situação da população negra daquele período. No Rio de Janeiro e ao lado de Abdias Nascimento e Rodrigues Alves, organizou ainda o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, em 1944, e posteriormente a Convenção Política do Negro Brasileiro, que teve lugar em São Paulo, em 1945, e no Rio de Janeiro, em 1946.
Aguinaldo Camargo morreu em 1952 vítima de um atropelamento, encurtando a trajetória de um militante que encarava a complexidade de um ativismo de muitas faces encarnadas nos dramas dos personagens que interpretava. Complexidade essa que tenho me dedicado a melhor compreender por meio de uma pesquisa iniciada a partir de incursões recentes como colaboradora no acervo documental do Ipeafro.
Assista ao vídeo da historiadora Clícea Maria Miranda no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); e EF09HI04 (9o ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).
Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais). EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).
Clícea Maria Miranda
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP);
mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); E-mail: [email protected]; Instagram: @climari73