Em 1944, o grande Abdias do Nascimento – ainda no início de sua trajetória como artista, intelectual e liderança política – conduziu a fundação do Teatro Experimental do Negro (TEN) no Rio de Janeiro, então capital federal. Ele poderia não imaginar, mas com esse ato surgia um importante marco na história da arte nacional, do movimento negro e do próprio Abdias. Tanto que Abdias e o TEN se tornaram quase sinônimos e, de fato, não se entende um sem o outro. Porém, vários outros nomes fizeram parte do projeto desde seu início: Aguinaldo Camargo, Wilson Tibério, Ironides Rodrigues, Maria de Lourdes Vale Nascimento, Ruth de Souza, Léa Garcia, Arinda Serafim e Marina Gonçalves. O destaque aos nomes femininos nesta pequena lista não é em vão.
Conforme já mencionado em trabalhos de Petrônio Domingues e Giovana Xavier, por exemplo, essas artistas negras foram fundamentais para a existência do TEN como conhecemos. Nessa perspectiva, abordo aqui brevemente a presença de Arinda Serafim e Marina Gonçalves, cujas informações biográficas ainda são escassas, infelizmente. Para contornar isso, baseei-me em relatos e rememorações escritas de Abdias, fotografias das atividades do grupo e alguns dados disponíveis no portal IPEAFRO, que me auxiliaram para a escrita deste texto.
De início, é importante ressaltar que o TEN trazia o teatro no nome e concebia o palco como sua principal arena de atuação política. Todavia, esse grupo também coordenou diversas outras práticas e iniciativas de associativismo negro que merecem destaque, como: aulas de alfabetização; concursos de beleza para mulheres negras; encontros e seminários sobre racismo; a organização do 1º Congresso do Negro Brasileiro, em 1950; a editoração do jornal O Quilombo: vidas, problemas e aspirações do negro; a fundação da Associação de Empregadas Domésticas, entre outras. Ações variadas que eram conduzidas por Abdias e por alguns dos nomes listados acima, sujeitos com trajetórias e profissões diversas que, em alguma medida, se identificaram com o projeto coletivo do TEN e se juntaram ao movimento.
Arinda Serafim aparece nos relatos de Abdias como alguém que se destacava nessa articulação, especialmente nos cursos de alfabetização. Segundo ele: “uma militante muito ativa nessa época foi Arinda Serafim. Ela era amiga de todas as domésticas e passava de casa em casa chamando, divulgando”. Além de frequentar as aulas, ela se tornou uma espécie de embaixadora dos cursos. Um gesto simbólico e, ao mesmo tempo, político. Isso porque à época, década de 1940, os índices de analfabetismo entre a população negra brasileira estavam em torno de 79% entre os homens e de 85,5% entre as mulheres.
Por outro lado, a reivindicação por acesso à educação é antiga entre os grupos negros. Diversos historiadores têm se dedicado a analisar tais iniciativas e os resultados desses estudos revelam que, ao menos desde o século XIX, havia uma série de entidades (clubes, irmandades, agremiações etc.) que entendiam o letramento como uma forma de reivindicar e construir experiências de cidadania, nas mais diversas partes do território brasileiro. Esses esforços são mapeados com ainda mais intensidade ao longo do século XX. Aqui, nesse amplo contexto do pós-abolição no Brasil, foram muitas as associações negras que ofereceram aulas de alfabetização às mulheres e homens negros para suprir a falta de ação do Estado, a exemplo do que fez o Teatro Experimental do Negro.
Porém, Arinda Serafim não estava apenas nesses cursos de alfabetização. Ela também esteve em pelo menos um espetáculo do TEN, O Imperador Jones, na estreia do grupo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1945.
Há, inclusive, uma disputa de narrativa em torno desse dado: do nome da atriz que, de fato, estreou no Teatro Municipal com o TEN. Ruth de Souza afirmou, em diversas entrevistas, que fez o papel de Velha Nativa na noite de 8 de maio de 1945 – data da estreia do grupo. Tanto que é considerada a primeira atriz negra a atuar no palco do Municipal. Porém, em um conjunto de documentos há o registro do nome de Arinda Serafim como responsável pela personagem. Na imagem acima reproduzida, ela aparece se preparando para o papel ao lado de Marina Gonçalves e sob a direção do próprio Abdias do Nascimento.Ruth e outros integrantes do grupo teriam participado do Recitativo Coral, uma apresentação de poesias afro-americanas que também aconteceu naquele dia 8 de maio. Além disso, ela assumiu o papel nas outras montagens do espetáculo, em julho de 1945 e junho de 1946, e protagonizou mais 7 peças da companhia, onde começou sua longeva e profícua carreira como atriz. Na imagem seguinte, abaixo reproduzida, ela aparece no canto esquerdo, como Hattie, contracenando com Marina Gonçalves, que está sentada, Abdias Nascimento e Ilena Teixeira, na peça Todos os filhos de Deus têm asas, do escritor estadunidense Eugene O’Neill, autor também de O Imperador Jones.
Já a presença de Marina é possível de ser mapeada durante os anos de 1945 a 1949 no TEN, período em que atuou em, ao menos, 4 espetáculos da companhia. Aparecia em papéis centrais e diversos, como na imagem acima reproduzida, caracterizada como Madame Harris, mãe dos personagens Hattie (Ruth de Souza) e Jim (Abdias Nascimento). Caracterização impressionante, aliás, pois Marina aparenta ser bem mais velha do que de fato era – como podemos perceber ao contrastar essa imagem com a anterior.
Marina Gonçalves trabalhava, segundo memórias de Abdias, como “roupeira”, ou seja, alguém responsável pelo cuidado e manutenção das roupas de uma família ou de um grupo de clientes. Mais um tipo de serviço doméstico. Abdias também registra que Marina chegou ao grupo através de Arinda, o que reafirma o lugar de mobilização que Arinda tinha entre suas colegas de profissão, a relação anterior das duas e a centralidade das empregadas domésticas nas ações do TEN. Essas mulheres eram parte de uma elite cultural e política negra que ia na contramão do que socialmente era pensado para elas.
Assim, registrar os nomes de Arinda Serafim e Marina Gonçalves na memória do teatro nacional é um esforço político. Ainda que a carreira de cada uma delas nos palcos não tenha se consolidado, como nos casos das pioneiras e soberanas Ruth de Souza e Léa Garcia, elas estiveram presentes nesses espaços e na história do Teatro Experimental do Negro, bem como na história deste país, dando outros sentidos e aprofundando nuances sobre a presença e agência da gente negra ontem e hoje. Sobretudo a partir dessas personagens. Arinda Serafim e Marina Gonçalves eram mulheres negras, empregadas domésticas, atrizes, militantes, lideranças, articuladoras, estudantes, etc. São vários os substantivos possíveis para descrevê-las. O mais importante, porém, é seguir escrevendo seus nomes e visibilizando suas histórias de luta e engajamento artístico-político. Se possível, acompanhados de suas fotografias, com seus rostos, traços, expressões, olhares. Imagens plurais de mulheres negras potentes que nos ajudam a ressignificar a memória coletiva e requalificar nossa história em torno dos feitos e cotidianos das populações negras no pós-abolição.
Assista ao vídeo da historiadora Patrícia Oliveira no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados.) EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil.)Ensino Médio: (EM13CHS101) Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais.
Patrícia Oliveira
Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas;
E-mail: [email protected]
Instagram: @patriciaoliveira224
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