‘Não tenho história triste, mas ser mulher negra me define muito’, diz executiva do setor de mineração, sobre os desafios para inclusão na indústria

Enviado por / FonteO Globo, por Cleide Carvalho

Integrante do Conselho Diretor do Instituto Brasileiro de Mineração e à frente do movimento Pretas na Mina, Ana Cunha afirma que discussão de gênero está posta, mas que questão de raça ainda patina no país

Diretora de relações governamentais e responsabilidade social da Kinross Brasil Mineração, Ana Cunha afirma que a contratação de mulheres no setor, onde os homens ainda predominam, está em alta, mas a saída delas também. À frente do recém-criado movimento Pretas na Mina, a executiva conta que as dificuldades vão do uniforme desconfortável à lentidão na progressão da carreira para as mulheres, que ainda precisam de ações afirmativas. Integrante do Conselho Diretor e do Conselho Consultivo Socioambiental do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), ela diz que a discussão de gênero já está posta, mas que as questões de raça ainda não acontecem e, sem olhar para elas, o Brasil não está olhando para as desigualdades.

Alguns setores produtivos já foram quase que exclusivamente ocupados e liderados por homens. Essa realidade mudou. Mudaram as mulheres ou mudaram as empresas?

Tem pouco mais de 40 anos que as mulheres passaram a ter direitos civis (Lei de direitos das mulheres, ONU, 1979) e abriram espaços até então proibidos. Nós mudamos, de geração em geração. Mudou a sociedade. As organizações estão mudando por pressão externa dessa agenda. Investidores exigem que sejam mais diversas e isso tem pesado muito nos últimos anos. Multinacionais também aceleram o processo, pois estão em estágio mais avançado em seus países de origem. Quando a gente fala de ESG e a diversidade está dentro dessas três letrinhas.

O que muda nas empresas com maior presença feminina?

Estudos mostram que a lucratividade aumenta quando há espaços mais diversos dentro das empresas. Aumenta também a criatividade e haverá melhores soluções se houver cabeças diferentes pensando. No final o resultado financeiro da empresa é melhor.

A contratação de mulheres está em alta na mineração?

Temos duas CEO mulheres no Brasil. (Ana Cabral-Gardner, da Sigma Lithium, e Ana Sanches, da Anglo American). Um estudo norte-americano mostra que estamos contratando mais mulheres, mas elas também estão saindo em maior número.

Por que elas saem?

Ainda não é um ambiente acolhedor, conectado com as necessidades femininas. Vai desde o modelo de trabalho, que tem menos flexibilidade de horários e de home office, ao modelo do uniforme, que não é feito para o corpo da mulher. Ela não se sente tão confortável. São pequenos sinais que estão ali, dizendo o tempo todo que aquele espaço não foi feito para você.

Para as mulheres, quais os desafios da carreira no setor?

Estudos mostram que elas levam mais tempo para progredir, mesmo que entrem em pé de igualdade com os homens. Ela vai se distanciando porque tem a coisa do reflexo. Narciso acha feio o que não é espelho. Em geral, o homem promove alguém igual a ele, que pensa como ele, com o mesmo modelo mental. No conta-gotas, eles vão avançando e as mulheres vão ficando. As empresas estão tentando mudar e há muita coisa sendo feita. Na Kinross, temos um trabalho de sensibilizar as lideranças e mostrar que o tratamento e as demandas das mulheres são diferentes.

Na prática, o que precisa ser feito para que a desigualdade na carreira diminua?

Uma coisa básica é a divisão do cuidado e do trabalho na sociedade. Enquanto isso não acontecer, as mulheres vão continuar em desvantagem dentro das empresas. Porque a jornada não é a mesma. Quando a mulher chega no trabalho, depois de ter levado o filho na escola e muitas vezes passado a noite acordada cuidando daquela criança, já chega drenada de energia. É uma questão que impacta profundamente a equidade. As empresas estão percebendo que o problema vai além de suas portas.

O setor costuma falar bastante sobre a presença de mulheres na base, na operação de caminhões nas minas. Ainda está em alta?

Há um trabalho grande nessa área. No ano passado, de uma única vez, contratamos 15 na Kinross. Este ano fizemos um trabalho de formação de 30 operadoras de máquinas móveis e 900 mulheres se inscreveram. Temos, na empresa e no setor, muitas geólogas, engenheiras de minas, engenheiras de produção. Estamos em todos os lugares, mas não estamos em maioria e nem chegamos a 50%. Trabalhamos para que tenha vagas afirmativas para mulheres em todas as áreas. Em todos os níveis, porém, ainda escutamos: “Vamos discriminar os homens? ” Aí dá vontade de rir e temos de mostrar os números de uma força de trabalho que ainda é predominantemente masculina.

Na sua trajetória pessoal, quais foram as dificuldades para chegar ao primeiro escalão?

Foram as dificuldades naturais de uma sociedade atravessada pelo machismo e pelo racismo. É um problema estrutural, muito mais implícito do que explícito. Quando me comparo com colegas homens, vejo que levei mais tempo para chegar nas mesmas posições. Trabalho há 25 anos na mineração e eu nunca tive uma diretora. Tive de me inspirar nos homens para exercer a liderança. Hoje temos mais mulheres e um processo de aceleração em curso.

Dê um exemplo prático dessa dificuldade.

A mulher ainda é muito criticada quando é direta, assertiva. É tido como inadequado, mas é justamente essa assertividade que todos esses homens têm e são vistos como líderes, que sabem o que querem e o que precisa ser feito. As mulheres da minha geração precisaram, de algum jeito, usar o modelo masculino para adentrar nesses espaços. Se parecer com aquele grupo na forma de se posicionar, no tom da voz, na forma de dizer as coisas. Isso mudou, mas ainda é preciso que as mulheres se mantenham atentas para que seus posicionamentos tenham o mesmo peso que o dos homens.

Ser mulher e ser uma pessoa parda ou negra. Qual das duas barreiras é mais difícil de transpor no mundo corporativo?

É ser uma mulher negra. Eu não sou só mulher, sou mulher e sou negra. Poderia dizer para você que ser uma pessoa negra num país como o Brasil é, por si só, uma grande dificuldade. Basta olhar os números de exclusão. No topo dela estão as mulheres negras. Na base da pirâmide social, temos as mulheres negras, depois os homens negros. Em seguida as mulheres brancas e os homens brancos. O gênero não é o maior definidor, mas não consigo dissociar uma coisa da outra. Não tenho uma história triste para contar, mas ser essa mulher negra me define muito. Se estou num país que tem 50% de mulheres, 50% de homens, 56% de pessoas pretas e tenho 100% de homens brancos dentro da empresa, tem alguma coisa errada. Como instituição, é preciso fazer os esforços necessários para que refletir a demografia do lugar onde estou.

A superação ocorre pela educação, pela qualificação?

Estudar e se capacitar é muito bom, mas é um privilégio. Não está dado a qualquer pessoa. Me formei inicialmente em relações públicas e não falava inglês, algo que está posto na carreira. Não pude estudar inglês antes de trabalhar, não tinha dinheiro. Passei anos da minha vida investindo. Todas as minhas férias eu pegava todo o meu dinheiro e ia fazer intercâmbio, imersão. Sabia que precisava ser de fato muito boa em tudo que eu quisesse fazer, para que não houvesse dúvida de que eu realmente tinha competência. A segunda coisa importante é o autoconhecimento. Sua autoimagem. Se não confiar e saber de sua competência, vai desistir no meio do caminho. Alguém sempre vai dizer que você não é boa o suficiente. Já ouvi gente dizer “acho que que essa posição é para você”. Uma vez concorri a uma vaga e uma pessoa que tinha muito poder sobre ela disse: “Não acho que você está pronta para concorrer para essa vaga”. E eu falei, mas eu acho que estou e vou. Uma terceira coisa muito importante são as relações de poder, as pessoas em seu caminho. Você pode ser boa quanto for, mas se não tiver alguém que abra uma porta não adianta. As pessoas costumam dizer que estão ali por mérito, mas, num país com tanta desigualdade, não existe meritocracia. Tive pessoas que me deram oportunidade e enxergaram o valor no que eu fazia. E empresas que investiram em mim.

E como acessar essas oportunidades?

Tem muito a ver com network (rede de contatos). Qual network que as pessoas de baixa renda têm? Inicialmente eu não tinha. Meu pai era cobrador de ônibus, não tinha nenhum amigo que trabalhava numa empresa. E isso faz uma enorme diferença, porque é uma loteria conseguir entrar. Não basta ser competente. Acho que tive sorte e ela não diminui o meu esforço. Eu estava pronta para a sorte.

As oportunidades diferem para homens e mulheres?

As mulheres têm menos network do que homens. Quando acaba o expediente ela não vai para o happy hour. Vai embora cuidar de outras coisas. Estou em Toronto, num congresso mundial de mineração. Estava num restaurante, no meio do distrito financeiro, e fiquei impressionada: 90% das pessoas eram homens. E as coisas acontecem nessas redes de relação. Não podemos ser ingênuas e achar que não.

Você lidera o movimento Pretas na Mina, o que é esse movimento?

É um movimento bem novo de reunir as mulheres negras que trabalham na mineração e discutir a agenda de todas nós. Quando olho para o lado, praticamente não as vejo na mesma posição. Na mineração, não tenho diretoras negras da minha relação pessoal e olha que conheço bastante gente. Já vi no Linkedin. Vejo pouco também em posições mais abaixo e também já me distanciei muito da base e não consigo ver como é que está lá. Me sinto sozinha. É uma solidão institucional.

O que entra nessa discussão?

No setor, trabalhamos muito focados em gênero, mas a discussão sobre raça ainda não aconteceu. Já ouvi coisas como mulheres que tem cabelo Black Power e são obrigadas a alisar, mesmo sem querer, porque o capacete não acomoda na cabeça, por exemplo. Precisamos descobrir onde estamos e o que acontece. O marcador de raça é o fundador e o definidor do brasileiro. Sem olhar para ele, a gente não está olhando para as desigualdades.


Ana Cunha, 49 anos, é pós-graduada em Comunicação Internacional pela Syracuse University e especializada em Gestão Responsável para a Sustentabilidade pela Fundação Dom Cabral, tendo se desenvolvido ainda em Liderança, pela FIA/USP, e em Sustentabilidade, pela Sorbonne University

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