Será que eu sou uma fraude? A mestiçagem e o meu não lugar

A vida inteira fui chamada de branquinha pelo meu pai e era assim que eu me via, apesar dos constantes comentários acerca do meu cabelo “ruim”, do meu nariz de “barraca” e da minha boca de “nego”. Sempre ouvi que apesar da minha pele clara, eu tinha um “pezinho na senzala”.

Quando eu entrei no Ensino Fundamental em uma escola pública perto da minha casa, eu e um primo íamos e voltávamos juntos, pela rua de barro. Eu adorava a escola, mas a gente tinha muitos problemas, como trocas de professores, greve, salas pequenas e abarrotadas de alunos. Todos nós queríamos a atenção da Tia, mas era impossível ela fazer um atendimento individualizado. Eu não me lembro de ter dificuldades de aprendizado nesta fase, mas acabei passando para a segunda série sem saber ler, ou pelo menos foi isso que disseram para os meus pais.

Acho que foi aí que tudo começou. Lembra do meu primo, pois é, ele também passou para a segunda série, mas sabendo ler. Passei todo aquele final de ano e todas as minhas férias sendo comparada com o meu primo e ouvindo que ele era muito melhor do que eu, pois já sabia ler.

Desde então, entendi que eu precisava me esforçar muito para conquistar meus sonhos. Eu comecei a estudar muito, principalmente a Língua Portuguesa, pois acreditava que tinha que me esforçar mais do que os outros para aprender. Meus pais sempre foram defensores da educação, mas estudaram muito pouco, foram apenas alfabetizados. E eu fui compreendendo que somente a educação seria capaz de mudar a minha realidade e quebrar aquele ciclo.

Cursei todo o Ensino Médio à noite, pois fazia estágio no período da tarde. Fiz técnico em Administração e era estagiária de um grande shopping aqui da capital do meu estado (ES). Chegava morta na sala, porquê morava em outra cidade e precisava pegar quatro conduções para ir e voltar do estágio, eram duas horas de ônibus na ida e duas na volta.

Lá, na meca do consumo (shopping), eu entendi o que era desigualdade. Na minha escola eu era uma menina branca, mas neste shopping eu entendi que não era tão branca assim. Os outros estagiários eram todos de escolas particulares e moravam na capital, além de não precisarem levar marmita, como eu. Os meninos sempre falavam comigo, na verdade me cantavam, mas as meninas não, com exceção de uma outra estudante, uma menina negra e pobre como eu. Ela já estava no estágio há mais tempo e me disse para não me preocupar, que com ela foi a mesma coisa. Eu não entendi e perguntei o motivo, ela nunca me respondeu. Nesta época eu tinha 17 anos e só tive a resposta quando entrei no Mestrado, em 2018, com 37 anos.

Eu sempre fui uma pessoa muito insegura (talvez em função do fatídico episódio de leitura da segunda série) e, por isso, me transformei em uma mulher extremamente perfeccionista. Por mais que eu estude ou treine muito algo vou precisar fazer e falar, na hora eu sempre acho que vai dar tudo errado.

Minha turma no Ensino Médio era formada majoritariamente por pessoas mais velhas e negras, que não tiveram a oportunidade de estudar na idade regular e decidiram voltar anos depois, com o sonho de conquistar uma vida melhor por meio dos estudos. Sonho este, que era meu também. Eu me sentia muito à vontade naquele ambiente, apesar da diferença de idade. Me reconhecia e me sentia aceita e acolhida. Nesta época que eu tive um professor de Português muito rígido, que sempre exigia de nós o nosso melhor, ao contrário dos docentes das outras disciplinas que pareciam fazer vistas grossas para nossas dificuldades, como quem dizia: “esses aí não vão dar em nada mesmo”.

Estudei minha vida toda em escola pública e sonhava em passar no vestibular em uma universidade federal. Terminado o Ensino Médio fiz um cursinho particular por dois anos, um tio pagava as mensalidades, mas eu tinha, e ainda tenho, muitas deficiências em determinadas áreas, como exatas por exemplo. Na minha segunda tentativa no vestibular da federal fiquei como suplente, mas nunca fui chamada. Eu lembro da sensação de derrota, frustração e raiva ao procurar meu nome naquela lista enorme dos aprovados, publicada no jornal que mais tarde eu iria trabalhar. Me senti extremamente incapaz, burra mesmo sabe? A mesma sensação de quando disseram que eu tinha terminado a primeira série sem saber ler. 

E agora? E o meu sonho? E a minha vontade de estudar e encontrar as respostas para as muitas perguntas que surgiram ao longo da minha vida, como aquela que fiz para minha única colega no dia do estágio? Eu sempre achei que a universidade me traria todas as respostas. Mas este sonho teria que esperar. Depois de avisar ao meu tio que eu não tinha passado no vestibular, pela segunda vez, e pedir desculpas aos prantos e com muita vergonha, fui procurar emprego. Comecei trabalhando como vendedora de uma loja de calçados no meu bairro e depois em uma grande loja de departamento, lá na capital. Trabalhando nesta loja eu tive acesso às roupas da moda, a maquiagem e a equipe era toda jovem. Como a empresa era uma multinacional (eu nem sabia o que era isso), a cultura da empresa era toda estrangeira. Aprendi alguns termos em inglês e achava que tinha, finalmente, encontrado o meu lugar.

Passei e alisar meu cabelo e a me distanciar de tudo que pudesse me levar de volta para aquele lugar onde as pessoas riam do meu cabelo, do meu nariz e da minha boca. O mesmo lugar que falava que eu seria uma boa parideira pois tinha as ancas largas.

Fiquei quatro anos neste emprego e a minha expulsão do “paraíso” começou lá pelo segundo ano. Eram mais de 8 horas diárias, trabalhos aos sábados e um salário ridículo. Pela segunda vez entendi que só a educação poderia me salvar. Parafraseando o grande mestre Paulo Freire, quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor e foi isso que aconteceu comigo quando entrei nesta loja. Eu achei que as roupas, a maquiagem e o cabelo liso me fariam aceita naquele lugar, ledo engano.

Decidi voltar a estudar, agora tentando o vestibular em uma faculdade particular, pois com meu salário poderia arcar com a mensalidade. Entrei no curso de Jornalismo e o primeiro dia foi a realização de um sonho. Ter contato com aquele ambiente, poder voltar a estudar, ler, estar em contato com professores que admirava, era uma vitória.

Um ano depois fui demitida da loja de departamento. E agora, como vou pagar as mensalidades? Lembro de chorar durante as duas horas no percurso de volta para a casa e de chegar em casa e contar para minha mãe que só falou “fique calma, tudo vai se ajeitar”. Continuei estudando por mais seis meses, graças aos recursos da minha rescisão. Era um sonho, até que um dia uma colega de sala, quando viu meu cabelo solto, veio em minha direção e meteu a mão nos meus cabelos e perguntou: “como você faz para ele ficar assim? É fácil lavar?”. Eu me senti tão invadida, tão violada, mas não tive coragem de pedir para ela parar. Achava que era só curiosidade, já que ela era branca de cabelo escorrido. Mas Como diz Kilomba (2019, p. 126), o cabelo das pessoas negras “[…] foi desvalorizado como o mais visível estigma da negritude […]”.

Como eu tinha que ser a melhor aluna, já no segundo ano comecei a pensar no tema do meu TCC. Queria muito pesquisar sobre relações étnico-raciais e fui falar com um professor que me questionou: “estudar preto? Seu tema tem que ser algo relevante, interessante. Sem falar que você precisa encontrar um professor que domine o tema, pois nem bibliografia para isso tem”. Saí frustrada e novamente percebi que as respostas que eu buscava não estavam aparecendo. E por qual motivo? Ali não era um ambiente acadêmico, repleto de pessoas iluminadas, estudadas e que sabiam de tudo? Foi quando me dei conta de que eu não tinha nenhum professor (a) negro e que talvez, por isso, ninguém pudesse me orientar.

Comecei a fazer estágio em um grande jornal impresso no Espírito Santo (o mesmo que publicava as listas do vestibular) e na comunicação de uma prefeitura, pois o dinheiro da rescisão tinha acabado. Trabalhava nos dois estágios ao mesmo tempo e não me sobrava nada no final do mês. Minha irmã pagava meu vale-transporte e eu almoçava pão todos os dias, durante dois anos. Nesse jornal minha primeira chefe foi uma jornalista negra. Recordo da minha admiração e surpresa quando fiz a entrevista com ela. Achei aquilo o máximo. Mas não pense que isso fez daquele ambiente um lugar diverso, plural e acolhedor.

Depois que me formei fui logo contratada como jornalista neste jornal e fui parar na editoria de Economia. A essa altura eu só andava com cabelo preso, mas uma vez fui com ele solto. Um editor, que nem era o meu chefe, me sugeriu não ir mais trabalhar de cabelos soltos, pois aquilo tirava minha credibilidade junto às fontes, formada em sua maioria por empresários e políticos. Isso aumentou ainda mais o ódio pelos meus cabelos e o tal “pezinho na senzala” que todos diziam que eu tinha. Eu era uma jornalista formada e contratada de um grande jornal, isso não era suficiente para me tornar qualificada pelas fontes? Porquê novamente meu cabelo era mais importante que minha formação?

De novo chorei, me acalmei, prendi o cabelo e nunca mais soltei no trabalho. Eu parecia uma aeromoça com o cabelo preso em coques, rabos de cavalo e gel, muito gel, para “domar” meu cabelo. E realmente, por mais dolorido que fosse, isso fazia diferença para os empresários ricos e brancos que eu entrevistava.

Foram cinco anos como repórter de Economia e muitos momentos incômodos como, por exemplo, quando um negro portando drogas era chamado de traficante e um rapaz branco detido com drogas era estudante, empresário… E as mulheres negras que nunca eram bonitas o suficiente para estampar a capa do jornal? Isso sem falar em expressões como mercado negro, denegrir, mulata, criado mudo. Mas porquê tanto incômodo, me perguntaram uma vez? E eu, novamente, não tinha a resposta. Meu curso de jornalismo não me deu.

E a insatisfação, o sentimento de não pertencimento, de não lugar, me atravessou de novo. Depois da redação fui trabalhar na assessoria de comunicação de uma faculdade particular e lá comecei a alimentar meu sonho de fazer um mestrado. Antes, fiz uma pós-graduação, mas outra vez não consegui levar adiante uma pesquisa sobre relações raciais. A desculpa foi a mesma da graduação.

E, aos 36 anos, depois de dez anos de formada, um filho pequeno, trabalhando 10 horas por dia, casada e vivendo o luto da perda da minha mãe, fui aprovada no mestrado em Comunicação na tão sonhada universidade pública. Àquela que me reprovou duas vezes no vestibular da graduação, que sensação maravilhosa. Recordo de no primeiro dia, quando os alunos (muito mais novos que eu) se apresentavam e falavam das suas expectativas, eu só consegui dizer que estava realizando um sonho e que desejava honrar aquele lugar, segurando as lágrimas. Piegas, mas era verdade.

Logo me inscrevi para uma disciplina chamada Territorialidades, culturas e identidades. Nem sabia direito do que se tratava, mas a professora era uma mulher negra e isso, pra mim, já era o suficiente. Essa professora me virou do avesso, me expulsou da minha zona de conforto e me trouxe de volta pra mim. Ela foi a única pessoa capaz de me olhar nos olhos e dizer que as respostas que eu buscava estavam dentro de mim. Me apresentou autores como Kabengele Munanga, Sueli Carneiro, Stuart Hall, Nilma Lino, Frantz Fanon, Lélia Gonzales, Guerreiro Ramos e tantos outros que, mesmo sem saber, eu esperei a vida inteira para conhecer. A professora me sugeriu ler o artigo Negros de pele clara (CARNEIRO, 2011) e o livro Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil (MUNANGA, 2019) e eu o fiz.

Depois de ter contato com os escritos desses autores, minha cabeça explodiu. Tudo que eu tinha passado a minha vida inteira começava a fazer sentido. Mas por que ninguém me falou isso antes? Professor Munanga trouxe a resposta: “[…] a ideologia racial elaborada a partir do século XIX a meados do século XX pela elite brasileira. Essa ideologia, caracterizada entre outros pelo ideário do branqueamento, roubou dos movimentos negros o ditado ‘a união faz a força’ ao dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de ambos” (MUNANGA, 2019, p. 12).

Eu sou uma mestiça, parda, negra de pele clara! Foi aí que eu encontrei o meu lugar. Foi aí que eu me achei de verdade e comecei a entender, também, meus privilégios em relação aos negros retintos. Sim, no Brasil, o preconceito é de marca ou de cor, em oposição ao preconceito de origem, baseado em uma gota de sangue, como acontece nos Estados Unidos.

“Apesar do processo de branqueamento físico da sociedade ter fracassado, seu ideal inculcado através de mecanismos psicológicos ficou intacto no inconsciente coletivo brasileiro, rodando sempre nas cabeças dos negros e mestiços. Esse ideal prejudica qualquer busca de identidade baseada em ‘negritude e na mestiçagem’, já que todos sonham ingressar um dia na identidade branca, por julgarem superior” (MUNAGA, 2019, p. 21). Eu quis ser branca! Minha família me acha branca. 

E voltando para a universidade, minha dissertação de mestrado pesquisou sobre a representação de quilombolas na mídia. Eu aprendi mais nos dois anos de mestrado, do que tudo que estudei a vida inteira. Mas o ambiente é hostil, branco e eurocentrado, porém, foi lá que encontrei irmãos que andaram comigo e abriram os caminhos para que eu pudesse insurgir. E assim o fiz. Hoje sou uma Mestre em Comunicação e pesquiso sobre mídia e racismo.

No entanto, eu ainda tenho dificuldades de aceitar minhas conquistas. Eu ainda me boicoto e, às vezes, me sinto nesse não lugar. “O passado colonial foi ‘memorizado’ no sentido em que ‘não foi esquecido’” (KILOMBA, 2019, p. 213).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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