Alunos podem e devem atualizar suas tradições

Nas salas de aula de uma escola pública em São Paulo, os alunos não são ensinados a relacionar o conteúdo dos livros à história de sua própria comunidade. Por conta disso, não se sentem pertencentes à humanidade, facilitando a aceitação de rótulos e estigmas como o de “favelado qualquer”.

Apesar disso, uma pesquisa realizada na Faculdade de Educação da USP demonstrou o quanto é possível mudar esse quadro utilizando o que é produzido cotidianamente pelos estudantes, como a música, a poesia e os desenhos, para que eles mesmos identifiquem os elos com seus antepassados. Ao fazerem isso, são capazes de se afirmarem como verdadeiros sujeitos políticos “da sociedade” e “na sociedade”.

A psicanalista Maíra Ferreira, autora da dissertação A rima na escola, o verso na história: um estudo sobre a criação poética e a afirmação étnico-social em jovens de uma escola pública de São Paulo , aponta a escravidão como a “barbárie brasileira”, cujas consequências ainda subjulgam a sociedade, principalmente quando o assunto é pobreza, discriminação e afirmação étnico-social.

Com esse olhar, ela estudou durante dois anos uma turma de 30 alunos, amantes do rap, da sétima série de uma escola pública da favela Real Parque, localizada no Morumbi. De 2 a 3 vezes por semana, observava os alunos, conversava com eles e, junto a alguns professores, passou a intervir em sala de aula.

No início de seu trabalho na escola, a psicanalista percebeu que nos tempos vagos entre as aulas, algo comum no dia-a-dia das escolas públicas em todo o Brasil, os adolescentes rimavam, improvisavam e desenhavam com muita facilidade, demonstrando a capacidade crítica inclusive com os temas escolhidos em suas artes. Além disso, o dom da oralidade também chamou atenção da pesquisadora. Contudo, ao mesmo tempo em que apresentavam tão rica manifestação cultural, recusavam suas origens no ambiente escolar.

Segundo Maíra, essa recusa denuncia a “presença e permanência de políticas discriminatórias brasileiras desde a época dos cativeiros”. A escola, ao não reconhecer e contextualizar a importância da história da comunidade que atende, e não relacioná-la com o presente dos alunos, “perpetua a formação social e cultural do preconceito brasileiro”.

Na sala de aula, a pesquisadora mostrou aos alunos as relações entre a capacidade de rimar e improvisar do rap, um dos elementos do Hip Hop, e as produções culturais do cordel e dos repentes nordestinos.
Tratando-se da Favela Real Parque, os estudantes são herdeiros culturais das famílias afro-brasileiras e indígenas Pankararu, oriundas do sertão de Pernambuco, que migraram a partir da década de 1950 para São Paulo principalmente para trabalharem na construção do Estádio do Morumbi.

Em busca dessas evidências de relação entre culturas, Maíra viajou para o Nordeste, para a região do Brejo dos Padres em Pernambuco, onde pesquisou o cordel e os repentes sertanejos como a cantoria de viola e o coco de embolada, expressões claras da tradição da oralidade, tão marcante no rap dos estudantes.

Com uma filmadora na mão Maíra andou pelas ruas nordestinas ouvindo e gravando declamações espontâneas: improvisos poéticos de farmacêutico, sapateiro, manicure, dentista, padre, crianças e idosos.

– Em uma cidade chamada São José do Egito (PE) ouvi o seguinte ditado: Aqui quem não é poeta é louco e quem é louco faz poesia –, disse a pesquisadora.

Segundo a psicanalista, mesmo diante da violência social, a miscigenação étnico-social brasileira apresenta sua resistência: “das rodas de jongos e capoeria aos improvisos dos repentes e do rap está o movimento de resistência, apropriação e criatividade frente às políticas de discriminação existentes desde a escravidão”.

Essa constatação é a prova de que durante a história do País não houve aniquilação da cultura dos povos que sofreram com tais políticas, e sim recombinação, reinvenção, recriação, ou seja, está aí um outro tipo de “marca humana” — no caso, o desejo de construir e não o de destruir.

Contudo, a “atualidade da escravidão brasileira” ainda aparece no cotidiano do brasileiro. De acordo com a pesquisadora, “a formação social brasileira está longe de elaborar e superar esse trauma que permeia as instituições de ensino e os espaços jurídicos do País”.

Para isso, é essencial e possível ensinar aos alunos que eles podem e devem “atualizar as suas tradições” a fim de se apropriarem do passado, para construírem seus projetos futuros. Aliás, um dos alunos traduziu muito bem o pensamento de Maíra: “Já sei, professora. É pegar carona na tradição”.

Fonte: Correio do Brasil

+ sobre o tema

CNU: governo decide adiar ‘Enem dos Concursos’ em todo país por causa de chuvas no RS

O governo federal decidiu adiar a realização das provas...

Geledés participa do I Colóquio Iberoamericano sobre política e gestão educacional

O Colóquio constou da programação do XXXI Simpósio Brasileiro...

Aluna ganha prêmio ao investigar racismo na história dos dicionários

Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas,...

para lembrar

Cidade Universitária terá praça em homenagem a Milton Santos

Homenagem a professor emérito foi aprovada por unanimidade pelo...

Ataques à ciência têm a diversidade como alvo, afirma Nilma Lino Gomes

Professora Faculdade de Educação fez a conferência de abertura...

Entenda o Pisa, que apresenta dados da avaliação mundial de educação

Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla...

Universidades paulistas completam dois meses de greve

Em greve há mais de dois meses, o retorno...
spot_imgspot_img

Projeto SETA tem novo financiador e amplia trabalho aprofundando olhar interseccional

O Projeto SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista), que atua em coalizão por meio da realização de pesquisas, incidência política, formações e campanhas...

CNU: governo decide adiar ‘Enem dos Concursos’ em todo país por causa de chuvas no RS

O governo federal decidiu adiar a realização das provas do Concurso Nacional Unificado (CNU), conhecido como "Enem dos Concursos", que seriam aplicadas neste domingo...

Geledés participa do I Colóquio Iberoamericano sobre política e gestão educacional

O Colóquio constou da programação do XXXI Simpósio Brasileiro da ANPAE (Associação Nacional de Política e Administração da Educação), realizado na primeira semana de...
-+=