As culturas negras vendem, mas quem lucra com elas?

A economia criativa arrecadou R$ 230 milhões no Brasil nos últimos anos, mas quem tem lucrado não é quem a produz

Do cuscuz nordestino pela manhã, ao café de São Benedito no altar, não há neste país um brasileiro que não carregue consigo um costume, uma memória afetiva cultural ou que não tenha sido benzido na infância.

Por aqui, somos por origem multiculturais, e mesmo com o processo de trânsito diaspórico forçado, nossas vidas são livros que registram heranças e nos forjaram como seres coletivos e consequentemente como sociedade.

Do ônus ao bônus dessa história, somos um país de área continental que pulsa pluralidade, mas também transborda reflexos coloniais e suas mais variadas violências que mudam a forma de atuar, mas que nos violentam até hoje.

Embora para alguns tudo isso pareça um conto romântico, a permanência de todas as nossas identidades se devem às nossas culturas que interconectadas geraram movimentos humanos e permitiram a partir da troca de contato, o agrupamento de pessoas que, violentadas pela estrutura colonial, utilizaram suas “estórias” e memórias reorganizadas e criaram novas tecnologias de convivência e sobrevivência coletiva, como um código de conduta, os movimentos culturais.

Com isso, temos hoje em nosso cotidiano diversas dinâmicas resultantes de uma grande ramificação de raízes etnico-culturais sejam elas híbridas dos processos coloniais, migratórios, diaspóricos ou não, mas que serviram de comunicação, pertencimento, adaptação humana e principalmente subsistência para que os povos aqui explorados pudessem coexistir retomando suas humanidades.

Nisso, variaram-se desde hábitos alimentares a grandes movimentos políticos como os das escolas de samba, das festas populares, das irmandades negras, dos terreiros de candomblé, das confrarias, do movimento hip hop, das equipes de bailes black até aos jovens bailes funks e suas multi-diversas reverberações artísticas, políticas e musicais que garantiram a persistência das nossas gerações.

Portanto, os aquilombamentos, as estratégias de resistência e sobrevivência indígenas, LGBTQIAP+ , pretas, femininas, migrantes; junto do fluxo de pessoas entre os estados nos anos 1960 e 1970, se transbordaram em nossas cidades diversificadas vertentes de expressões artístico-culturais que formaram marcos civilizatórios contemporâneos para o que acreditamos ser hoje a cultura brasileira. Que fluída, chega por vezes em espaços pelo mundo, se difunde em escutas e inúmeros olhares que em sua maioria a educação tradicional não alcança, construindo novos imaginários para o que somos.

Porém, dentro do jogo de um sistema capitalista em que até a violência da colonialidade se renova, novos estilos de vida e fazeres culturais se tornam um produto, desfazendo-se de suas marcas políticas, caindo no dilema frio do mercado.

Logo, quem lucra com elas?

Os mesmos de sempre, ou melhor, os herdeiros dos de sempre.

E assim como se tivéssemos uma grande metodologia de replicação, observamos novos braços de um mercado dessa vez neocolonial, com as mesmas abusividades, porém dessa vez mais cult, mais moderno e mais atual; envolto nas tendências de diversidade marcas, das ESGs, do Pacto Global da ONU e suas tecnologias, buscando se encaixar em um movimento que vende cultura e entretenimento a partir dos símbolos da pluralidade, mas enriquece os bolsos das pessoas de sempre e esvaziando nossos movimentos políticos e nosso protagonismo.

E será que vale a pena? Segundo o Observatório do Itaú Cultural, a indústria da economia criativa arrecadou R$ 230 milhões no Brasil em 2020, correspondendo a 3,11% do PIB, superando naquele ano, os números da indústria automobilística.

Entretanto, sabemos que pouquíssimo é o índice de ocupação de pessoas pretas e indígenas nas tomadas de decisão deste grande, embora recente mercado. Afinal, apesar dos movimentos culturais nacionais serem evidenciados como tendência global, sendo exportados por diversos países, assim como os artistas de funk e os novos nomes da música por eles dita “urbana” baterem seus milhões em números sem precisarem de grandes investimentos, os lucros desse grande mercado não é nosso.

Com isso, reafirmo que a violência embora diminua sua forma, não perde atuação, principalmente diante de um fator econômico que gera autonomia aos explorados em um país de herança escravocrata.

Sendo assim, ainda estamos falando de novas formas de objetificação e esvaziamento de movimentos genuinamente identitários, que formatam a sobrevivência e o imaginário dos futuros culturais do país; que embora ocupem sua relevância midiática seguem sendo perseguidos e com seus direitos à cultura, privados; porque mesmo que sendo detentores de suas narrativas o mercado cultural que as vende ainda explora, e não nos liberta.


Ciça Pereira

Empresária e gestora cultural, é CEO da Zeferina Produções e da plataforma de soluções para equidade racial no mercado de trabalho, a comunidade Afrotrampos

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