As mulheres negras no dia 14 de maio de 1888 – Por Deise Benedito

Era um domingo de sol, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea que Aboliu a Escravidão no Brasil.
Quando a princesa chegou, a multidão, ansiosa, ficou em silêncio.
Pois bastou ela completar a assinatura, para ecoar uma explosão de bravos e aplausos. 
A cidade nunca tinha visto festa igual! Famílias inteiras choravam de alegria. Inimigos da véspera abraçavam-se.
O dia 13 de maio de 1888 foi um marco na vida de milhares de homens e mulheres africanas e a população negra ainda escravizada.

Machado de Assis

Por Deise Benedito*

Porém, na 2ª feira, dia 14 de Maio, iniciaria a mais perversa trajetória de homens e mulheres, jovens e idosos negros no Brasil, agora na condição de “ex-escravo”.

Muitos dos ex-senhores de escravos encontram-se ainda inconformados com a lei que dava por extinta a escravidão em todo o território nacional; pressionaram vários parlamentares para que a Lei fosse então revogada. Em vários estados a segurança foi reforçada, por temerem saques e vinganças contra os Senhores Escravocratas.

No âmbito jurídico – da transição da condição de escravo a homem e mulher livre – nada os acolheu: nenhuma política no campo da economia, educação, saúde, moradia; nenhum compromisso foi firmado com essa população, agora livre.

Para mulheres negras jovens e idosas – agora na condição de ex-escravas – está colocado mais um novo desafio: a sua sobrevivência e a reconstrução de suas vidas, de seus filhos, maridos, sobrinhos e netos. Agora livres, muitos não mais poderiam continuar nas fazendas de seus senhores. Aquelas que já estavam nas ruas trabalhando como ambulantes, agora deveriam ampliar suas atividades. Passariam a também ser lavadeiras, engomadeiras, passadeiras, amas de leite, babas, faxineiras, cozinheiras, confeiteiras, arrumadeiras, empregadas domesticas. Muitas, em troca de um prato de comida, um local em condições humilhantes e insalubres lhes garantiriam a sobrevivência, muitas vezes longe de seus familiares.

Porém, a imagem da mulher negra é vista como de uma ex-escrava cuja “dona de casa” lhe faz um favor quando que oferece trabalho, em troca de casa e comida. E isso é visto, aos olhos de muitos, como “proteção”, sendo que tal atitude permite que mandos e abusos sejam infringidos contra essas mulheres no interior de várias casas; tudo recebido com passividade.

Esta, quando jovem, é também vista como “bem de uso” no mundo dos brancos, cuja corpulência é transformada em objeto sexual. Quando possuidora de seios fartos, transforma-se em uma ama de leite e, através da amamentação, garantiria herdeiros saudáveis dos futuros presidentes, juízes, desembargadores, ministros, secretários de estado, governadores, prefeitos do Brasil.

Através do devotamento, embalo, afeto à família para a qual prestavam serviços, muitas vezes, por não terem hora para o descanso foram impedidas de acompanhar o crescimento e a educação de seus filhos, netos, sobrinhos.

A trajetória de algumas mulheres negras, já com idade avançada e acometidas de várias doenças causadas pelas condições desumanas de trabalho, pelas péssimas acomodações e pouca ou nenhuma alimentação adequada, levaram-nas a mendigar junto às portas das igrejas, na esperança de que a fé pública pudesse a elas abrandar o sofrimento e o descaso por anos e anos de trabalho sem nenhuma indenização.

Outro fator essencial para a sobrevivência pós-abolição foi a religiosidade que modelou a cultura brasileira. Muitas dessas mulheres passaram a assumir a liderança das comunidades sócio-religiosas afro-brasileiras. Essas mulheres eram detentoras do poder de lidar com a força divina dos Orixás e de seus ancestrais.

Ao mesmo tempo se tornavam mulheres temidas e respeitadas, através dos mistérios e poderes sustentados através de uma sabedoria inviolável e seguida de códigos e símbolos africanos.

Gerações de mulheres negras sobreviveram, através da religiosidade, ao rigor da escravidão. Agora, tinham de resistir ao preconceito religioso e às perseguições, como forma de resistência cultural e em defesa da continuidade de seus valores éticos e culturais.

Ele veio silenciosa nos porões do navio negreiro, presenciou todas as barbáries praticadas contra homens, mulheres e crianças durante a escravidão. Tornou-se o acalanto para as dores e o sofrimento, espalhou-se nas senzalas. Após a abolição da escravatura, surge um novo ritmo introduzido no Rio de Janeiro e que se alastraria por todo Brasil, ganhando novos adeptos e novos instrumentos. Esse ritmo adentra a casa da baiana Tia Ciata, de Tia Amélia (mãe de Donga), de Priciliana (Mãe de João da Baiana) e instala–se no seu quintal, nos morros e becos, para que músicos e batuqueiros pudessem tocar e cantar ao redor de uma enorme mesa repleta de garrafas e quitutes, caldos, feijoada; o que garantiria o sustento de muitas famílias nos finais de semana, pedindo passagem para a dignidade que se tornaria o patrimônio cultural da humanidade: o Samba.

Com o crescimento da industrialização, as mulheres negras passaram a ampliar os seus conhecimentos para adentrarem no mercado de trabalho.

O Brasil passava por várias mudanças no campo político e social.  Agora era uma Republica e as primeiras mulheres feministas no Brasil passam a se manifestar no ano de 1910, fundando o Partido Republicano Feminino e tendo como fundadora Leonilda Daltro, no Rio de Janeiro.

Em 1922 é fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que desenvolve a campanha pelo voto feminino.  O êxito nos seus feitos e a conquista do voto para mulheres se deu.

Porém o sucesso dessa conquista se dá pelo fato de que muitas mulheres negras, empregadas domésticas, babás, ficavam em casa, cuidando dos filhos e maridos dessas mulheres, para garantir essa conquista.

A política passa a ferver em todo o território nacional.  É criada a Frente Negra Brasileira, em 16/09/1931, em São Paulo, nascendo da indignação de negros/as abnegados/as, tendo como um dos seus objetivos a integração de negros no mercado de trabalho, além do combate ao preconceito e à discriminação de que eram vítimas.

A Frente Negra Brasileira tinha seu Departamento Feminino que era responsável pela alfabetização de homens negros, de mulheres negras, de crianças e jovens.  A FNB se constituiu em um movimento de caráter nacional, com repercussão internacional, sendo então extinta em 1938, pelo então Presidente Getúlio Vargas, 50 anos após a Abolição.

Em 1944, nasce o Teatro Experimental do Negro, com Abdias Nascimento à frente e a primeira atriz negra: Ruth de Souza. O Departamento Feminino do TEN teve como responsável a Sra. Maria Nascimento que fundou o Conselho Nacional das Mulheres Negras, composto por mulheres negras empregadas domésticas, em sua maioria.  Transcrevemos abaixo alguns trechos do seu pronunciamento, na noite da fundação, em 18 de junho de 1950.

A Integração da Mulher de Cor na Vida Social

“A mulher negra sofre várias desvantagens sociais, por causa do seu despreparo cultural, por causa da pobreza, pela ausência adequada de educação profissional.”

O Conselho Nacional das Mulheres Negras terá um setor especializado em assuntos relativos à mulher e à infância.  Esse Departamento Feminino tem como objetivo lutar pela integração da mulher negra na vida social, pelo seu levantamento educacional cultural e econômico.

“Desejamos fazer funcionar imediatamente um curso de artes culinárias, corte e costura, alfabetização, datilografia, admissão, ginásio e outros mais.  Contaremos com professores voluntários.  Será uma campanha voluntária para elevação educacional das mulheres negras”

Irão funcionar imediatamente os seguintes setores do Conselho Nacional de Mulheres Negras:
• Ballet Infantil
• Educação e Instrução
• Curso de Orientação de Mães
• Teatro Infantil
• Assistência Jurídica – Criminalista Dr. Celso Nascimento
• Orientação Sociológica ¬– Prof. Guerreiro Ramos
• Corte e Costura – Nina de Barros
• Tricot – Srª. Natalina Santos Correa
• Bordados- Caty Silva
• Natação- Caramuru de Amaral
• Educação Física- Alberto Cordovil
• Datilografia- Milka Cruz

Partes do discurso proferido nos fins dos anos 40 já apontavam os caminhos a serem construído pelas mulheres negras no Brasil, ao longo das décadas de 1960, 1970, 1980, 1990, chegando ao século XXI.

Sabemos que a cultura de violência advinda do período da escravidão é ainda presente em todas as esferas da vida social brasileira.  As mulheres negras sempre desenvolveram a luta contra a ideologia escravocrata, revivendo e recriando contos, lendas, mitos e recriando o patrimônio civilizatório africano na Diáspora Africana.

A discriminação racial e a violência são problemas sociais que atingem as mulheres negras e as impedem de ter uma vida digna e de serem respeitadas como cidadãs.  Sua representação na sociedade não é vista por suas qualidades e valores, competência e sabedoria.  Mesmo assim ela sobrevive numa luta insana para seu sustento e de sua família, para reviver, para manter a consciência negra.

Não lhes foram assegurados os direitos básicos e fundamentais para a pessoa humana: o acesso ao trabalho remunerado com dignidade, moradia, assistência de saúde adequada, respeito aos seus valores éticos, sociais, culturais e morais.

As mulheres negras passam a se organizar em associações de moradores, escolas de samba, movimento social e no movimento negro.  Passam a exigir seus direitos.  Apontam que a discriminação racial e a violência doméstica são fatores agravantes em suas vidas; participam da vida política do Brasil, em Seminários, Encontros, Palestras, Congressos nacionais e internacionais.

As Conferências do Sistema ONU, tais como ECO 92, Conferência de População do Cairo, Conferência da Mulher em Beijing, Conferência de Direitos Humanos de Viena, Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban, em 2001, contaram com a presença das mulheres negras que atuam em ONGs, no movimento social e em partidos políticos, mesmo tendo sua representação bastante reduzida ou inexistente no Congresso Nacional, nas Câmaras e Assembléia Legislativas, em todo o território nacional.

Inúmeras mulheres negras, presentes em diversas mobilizações, criam redes, fóruns e articulações nos espaços de governo, onde apresentam suas pautas de reivindicações.

As mulheres negras jovens, por sua vez, passam a se organizar e participar de forma ativa nas discussões do movimento feminista e movimento de mulheres negras, lutam contra a homofobia, o tráfico de mulheres e a exploração sexual.  As bandeiras do movimento de mulheres negras são “combate a violência contra mulher e violência intrafamiliar”, “abuso e os maus tratos contra crianças e adolescentes”, “garantia de proteção à maternidade durante e pós-gravidez”, “combate ao trabalho infantil”.  As lutas do movimento de mulheres negras são pela implementação de ações afirmativas e o monitoramento das políticas públicas, visando relações igualitárias entre homens e mulheres; a necessidade de capacitação dos gestores públicos, para a implementação das políticas públicas com o corte de gênero e raça; a titularidade das terras de remanescentes de quilombos; a adoção de cotas nas universidades; a necessidade da melhoria da qualidade do ensino; ampliação do número de vagas no ensino superior; o acesso à Justiça, à segurança e moradia digna; o reconhecimento dos Direitos Trabalhistas para as empregadas domésticas; o fim da violência e do racismo institucional nas “febems”, presídios, manicômios hospitais psiquiátricos.

Um dos principais desafios para as mulheres negras organizadas no século XXI é a luta conta o neoliberalismo, pelo fim das desigualdades, contra a intolerância religiosa e por uma afirmação positiva das mulheres negras, jovens e idosas nos meios de comunicação.  A necessidade do reconhecimento dessas mulheres negras, jovens, idosas como agentes de transformação e símbolo de resistência tem sua origem na África.  No momento em que suas ancestrais foram capturadas, aprisionadas nos depósitos de embarque para o novo mundo, a falta de dignidade foi instaurada e se perpetuou durante a travessia do Atlântico.  A resistência dessas mulheres durou todo o período do escravismo, permanecendo como um legado de ouro até os dias de hoje.

A trajetória das mulheres negras pela dignidade da pessoa humana sempre foi uma constante na busca por reparações.  É a garantia de que nada foi garantido às mulheres negras, jovens e idosas no dia 14 de maio de 1888.

Referências

Hunot, Silva Lara.  Campos da Violência.
Fraga Valter.  Meninos, Moleques e Mendigos.
Nascimento, Abdias.  Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro.
Benedito, Deise. Deserdados do Destino.

*Deise Benedito é Coordenadora de Articulação Política e Direitos Humanos da Fala Preta Organização de Mulheres Negras; Secretária do Fórum Nacional de Mulheres Negras; Membro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial – CNPIR.

 

 

Fonte: Amaivos

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