Audiência Cotas OSCAR VILHENA VIEIRA

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI
(PRESIDENTE E RELATOR)

Chamo agora o Professor Oscar Vilhena Vieira, Doutor e Mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito pela Universidade de Columbia, e aqui representando a Conectas Direitos Humanos – PUC, São Paulo e Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.

Esclareço aos ouvintes e assistentes que houve uma pequena inversão na ordem dos trabalhos, porque estaria escalado para falar agora o Professor Kabengele Munanga. Parece-me que o Professor Oscar Vilhena tem um voo agendado, então houve uma troca. O Professor Oscar Vilhena tem a palavra por quinze minutos.


AUDIÊNCIA PÚBLICA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 186 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 597.285 O SENHOR OSCAR VILHENA (PROFESSOR DOUTOR E MESTRE) – Bom-dia a todos.

Gostaria, em primeiro lugar, de agradecer a oportunidade que o Excelentíssimo Senhor Ministro Ricard Lewandowski nos deu para debater esse tema. Também gostaria de congratular-me com os Senhores Ministros, com a Subprocuradora-Geral da República presente nessa mesa e agradecer ao caríssimo amigo Kabengele por me permitir falar antes dele.

 

Em primeiro lugar, gostaria de colocar que esse é um momento histórico para esta Corte. Isso é falado em muitos casos, mas esse, sem dúvida nenhuma, é um dos casos que vai fazer com que esta Corte construa, nesse caminho que ela tem, uma posição vanguardeira entre as grandes cortes constitucionais no mundo. É muito importante desmistificar uma coisa: a ação afirmativa não é uma invenção americana. A ação afirmativa foi inventada pela Constituição Indiana, por dois senhores. Um, que havia morrido pouco antes da constitucionalização, chamado Ghandi e outro chamado Neru. Foram eles que colocaram, na Constituição Indiana, a necessidade de que o estado tomasse medidas claras para reverter um processo secular de estratificação dos mais perversos que existe na humanidade.

Os americanos aprenderam com os indianos. O sul-africanos aprenderam com os indianos, os brasileiros estão aprendendo com os indianos, os húngaros estão aprendendo com os indianos. Então, isso não é uma invenção americana, isso é algo que nós sentimos necessidade, se quisermos mudar a nossa sociedade.

 

Ministro, dado que nós temos um grupo muito grande de pessoas que irão focar distintos pontos, inclusive, ontem, magnificamente expostos tanto pelo IPEA quanto pelo MEC, eu gostaria de chamar atenção apenas para uma questão que me parece ser o principal divisor de águas.

Afinal, a inclusão do critério “raça” em processo de seleção para o ensino universitário, por intermédio de ações afirmativas – não necessariamente quotas -, viola a constituição ou não? Se o Senhor me permite, é só sobre isso que gostaria de falar.

A minha resposta é evidentemente negativa.

Não só os programas de ação afirmativa que incluem raça – não apenas raça, que incluem pobreza, inclui origem escolar e outras coisas – não só não são compatíveis com o princípio formal da igualdade, como eles são uma exigência constitucional para a realização de uma série de princípios e políticas e objetivos constantes de diversos artigos da Constituição. É sobre isso que eu gostaria de tomar a atenção de Vossas Excelência. Em primeiro lugar, qualquer mecanismo de escolha dentro do Estado exige critérios de discriminação. Se nós pegarmos vestibulares, ele tem critérios, saber, acúmulo de saber.

Portanto, se a prova de inglês de uma universidade como a que eu partilhei com o Ministro Lewandowski, a Universidade de São Paulo, exige um determinado índice, esse é o critério de exclusão, quem adquiriu esse índice de Inglês, entra, quem não adquiriu, sai. É evidente, todos nós sabemos, que isso leva a uma enorme e desproporcional exclusão de determinados grupos dentro da nossa sociedade. Não vejo exemplo mais cabal do que o seguinte: Martin Luther King, que é reconhecido como um dos maiores oradores do Século XX, foi excluído, repetiu o exame do vestibular da Universidade de Boston em expressão oral.

É evidente, como falava um dos meus antecessores, que a língua que se fala nos guetos é incompreensível. Se o vestibular não é feito por estes, evidentemente que a língua que se fala nos guetos não será suficiente para atingir os critérios universais, meritocráticos, igualitários, que se exige no vestibular.

Um jovem que faz uma escola que tem uma duração duas vezes maior do que o jovem que vai para a escola pública, que tem livros em casa, que tem pais que falam línguas, que fazem intercâmbios, como podemos dizer, como disse a professora Eunice, que vestibular é meritocrático? O vestibular não é meritocrático, o vestibular é uma forma de premiar o investimento que os pais foram capazes de fazer sobre seus filhos, os filhos também têm mérito porque estudaram e aproveitaram as oportunidades que os pais deram, mas é um investimento. Nós não podemos pegar um recurso público tão dispendioso, numa sociedade tão desigual, e dá-la como prêmio aos filhos dos pais que tiveram algum tipo de mérito. Isso é o vestibular hoje em dia, especialmente nos cursos mais concorridos das universidades públicas.

A consequência disso é uma desproporcional exclusão de determinados setores da sociedade, e a nossa ordem jurídica – ao ratificar a convenção contra todas as formas de discriminação racial, ao estabelecer que discriminação não é só o ato que tem por objetivo excluir uma pessoa de direitos, mas também aquele ato que tem por resultado a exclusão dessas pessoas – impõe que processos seletivos desproporcionalmente excludentes não sejam tolerados.

É nessa medida que a ação afirmativa tem uma primeira função, que não tem nada a ver com distribuição ou com raça, ela tem a função de corrigir os processos seletivos. Ela corrige, porque ela ajusta aquelas condições que não foram dadas a determinados grupos através da pontuação, criando uma cesta de critérios para que todos possam, sim, concorrer em igualdade de condições. Aliás, é isso que determina a Constituição brasileira quando fala sobre a educação: o acesso deve se dar em igualdade de condições, e o acesso à educação universitária deve ser segundo a capacidade.

O nosso vestibular não mede a capacidade, o nosso vestibular mede outra coisa, mede investimento. Quem sabe mais? Quem tem mais capacidade? Um jovem que estudou no Saint Paul em São Paulo e tirou nove na prova de Inglês ou um jovem que estudou precariamente numa escola pública de periferia e tirou cinco? Quem tem mais capacidade de aprender? Não tenho dúvida de que esse jovem tem muito mais capacidade.

Senhor Ministro, então, nesse sentido, as ações afirmativas são suavemente aceitáveis pela nossa Constituição para aliviar a inconstitucionalidade de processos seletivos altamente excludentes. Mas não é apenas isso: as ações afirmativas não servem apenas para corrigir um defeito hoje existente. As ações afirmativas têm uma outra função: elas são uma exigência constitucional entre as diversas políticas públicas que a nossa Constituição determina, ela exige que coisas sejam feitas, muitas coisas. Vamos lá ao que ela exige à educação.

A educação não é transferência de conhecimento de uma geração para a outra, muito menos um prêmio para aqueles que tiveram condições de investimento.

A educação serve ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e à formação da cidadania, está no artigo específico sobre a educação. Mais do que isso: a educação universitária serve ao ensino, à pesquisa e à extensão. O que significa extensão? Intervenção na sociedade, contribuição com a sociedade.

Pergunto-me, Ministro: como uma universidade predominantemente branca – eu fui uma escola branca, fui uma universidade branca, tive alunos, durante vinte anos, brancos, com exceção de alguns que vieram do intercâmbio com a África e algo que cabe na minha mão daqueles que eram brasileiros. Vinte e um anos de ensino na universidade, uma universidade branca. Será que a universidade branca, que não é plural, que não tem diversidade, oferece condições para a realização da sua missão constitucional? Será que ela é capaz de atender ao pluralismo exigido pela nossa Constituição?

 

Será que ela é capaz de enfrentar os problemas de erradicação de pobreza, de justiça e de solidariedade? E mais especificamente: é possível fazer boa pesquisa com grupos que não tenham diversidade? É possível ter ensino plural com grupos que sejam homogêneos? É possível ter extensão quando a escola sequer se abre para esses grupos ao qual ela deveria dialogar? Parece-me que não.

Então, as ações afirmativas que incluem raça, porque esse é o critério que o IPEA, o IBGE e o MEC demonstram que gera uma desproporcional exclusão, não é só pobreza, pobreza também gera, educação e escola pública também gera, mas a raça se sobrepõe a todos esses; então, a ação afirmativa é um mecanismo legítimo, exigido pela Constituição, para que a educação universitária possa ser plural e que possa haver diversidade.

Nós sabemos, Ministro, que somente quando o número de pessoas não-brancas que fizeram universidade e puderam alçar a postos importantes, a exemplo do Ministro Joaquim, é que haverá a ruptura desta lógica de que a nossa sociedade é uma sociedade hierarquizada e que o papel dos negros não é no Supremo Tribunal Federal, mas que o papel do negro é em posições subalternas a essa sociedade. É isto. A universidade é o principal mecanismo pelo qual nós incluímos as pessoas e damos a elas a possibilidade de representação social. Fechar as portas da universidade, como nós fechamos nesses magníficos anos de República, aos não-brancos, gerou uma sociedade desigual, uma sociedade perversa, uma sociedade injusta.

Concordo com o meu colega Luiz Felipe Alencastro: não há risco. A inércia que foi o desastre.

Todos esses anos após o fim da escravidão nos legaram uma sociedade fragmentada, uma sociedade violenta, quarenta e sete mil homicídios no ano passado, uma sociedade fragmentada. Nós temos aqui uma chance de reconstruir a nossa sociedade. Este é um risco que nós não podemos correr: nos dar a chance de reconstruir a nossa sociedade.
Muito obrigado a todos.

 

 

Fonte: Lista Racial

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