Beatriz Nascimento: nem que me custe a vida…

Heróis e heroínas são pessoas que jamais se negam a lutar em defesa do que acreditam, mesmo diante do imponderável. Mas só aquelas que têm a coragem de ir até as últimas consequências conquistam o status de mártir

Por: OSWALDO FAUSTINO

Quem mergulha nos pensamentos, nas angústias e na história de vida da guerreira negra Beatriz Nascimento, que deu a vida em defesa do respeito à dignidade feminina, nunca mais se sentirá como era antes. Uma história que se inicia em Aracaju, e prossegue, em 1945, quando Beatriz tinha três anos, assim como na canção de Dorival Caymmi: “peguei o Ita no norte pra vir pro Rio morar…”. Foi exatamente nesse famoso navio de retirantes que embarcaram o pedreiro Francisco Xavier Nascimento, a dona de casa Rubina Pereira Nascimento e seus 11 filhos, na década de 50, para desembarcar em meio às imensas dificuldades de uma cidade em ebulição político-social, carente de infraestrutura, que já não comportava sua população negra pobre imigrante.

Nesse universo e realidade foram forjadas tanto a personalidade quanto as reflexões que se constituem no pensamento vivo dessa intelectual que iniciou sua graduação em História, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aos 28 anos. A quantidade de horas-aula, em escolas da rede pública de ensino que precisava cumprir, para garantir a própria sobrevivência, jamais foi desculpa para Beatriz Nascimento não prosseguir sua dedicação à pesquisa sobre questões relacionadas com a história e a cultura afro-brasileiras.

“ERA PARA ENFRENTAR O RACISMO QUE BEATRIZ NASCIMENTO SE DEDICAVA TÃO INTENSAMENTE AOS ESTUDOS. MUITOS DE SEUS ARTIGOS PUBLICADOS, ENTREVISTAS, CONFERÊNCIAS, EXPLANAÇÕES E DEBATES, EM SEMINÁRIOS E ENTRE AS MILITÂNCIAS, ABORDAM A CORRELAÇÃO ENTRE A CORPOREIDADE NEGRA E SEUS ESPAÇOS PERMANENTES”.

Militância, debates, negritude
A opressão da ditadura, marcadamente após 1968, com o Ato Institucional número 5, produziu nos movimentos sociais da época o efeito de uma mola: quanto maior a compressão, maior o impulso da reação. Desta forma, o movimento negro e o estudantil, principalmente nos grandes centros urbanos, reagiram tanto com manifestações e reivindicações quanto com a busca de aprofundamento na busca de conhecimentos sobre as questões de seu interesse. Na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1974, onde posteriormente fez sua pós-graduação, Beatriz liderou a criação do Grupo de Trabalho André Rebouças e, por meio dele, conectava-se com pesquisadores negros e brancos que produziam saberes no país e fora dele. Ao mesmo tempo, compartilhava suas reflexões com os demais por meio de conferências e debates, como os que ocorriam, anualmente, nas Semanas de Estudos sobre a Contribuição do Negro na Formação Social Brasileira. O GT André Rebouças publicou três edições de um caderno que documentam esses eventos.

Só se é capaz de combater com eficácia o que se conhece bem. Era para enfrentar o racismo que Beatriz Nascimento se dedicava tão intensamente aos estudos. Muitos de seus artigos publicados, entrevistas, conferências, explanações e debates, em seminários e entre as militâncias, abordam a correlação entre a corporeidade negra e seus espaços permanentes – como quilombos e outros dedicados à religiosidade de matriz africana – ou transitórios, como os bailes black, os clubes sociais negros e as escolas de samba.

Suas palavras-chave são “transmigração” – sobre os deslocamentos dos africanos e afrodescendentes, ao longo do tempo, por exemplo, da senzala para o quilombo, do campo para a cidade, do Nordeste para o Sudeste – e “transatlanticidade” – decorrente da diáspora africana que recria a cultura negra na relação intercontinental -. Daí a expressão que deu origem ao título da obra do antropólogo Alex Rattz, da Universidade Federal de Goiás, Eu sou Atlântica – sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em parceria com o Instituto Kuanza, em 2007.

Assim como as duas outras personalidades retratadas nesta coluna, Beatriz também se valeu da arma chamada palavra com a qual construiu poemas que desnudam sua alma de mulher negra. Ela faz parte de uma história de mulheres que combateram frontalmente o sexismo, o machismo e as violências domésticas. Pagou com a própria vida a solidariedade de abrigar, em sua casa, uma amiga, vítima desse tipo de violência. Era 28 de janeiro de 1995. O criminoso era um presidiário beneficiado pelo indulto de Natal, que não retornou à prisão na data determinada. Comenta-se que pertenceria ao esquadrão da morte, raiz das atuais milícias que promovem o genocídio da juventude negra. Que falta nos faz Beatriz Nascimento para enfrentar, de cabeça erguida, mais essa prática racista!

 

Fonte: Raça

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