Em entrevista ao Brasil de Fato, apresentadora conta que é impossível separar sua cozinha da política
Por Mariana Pitasse e José Eduardo Bernardes, Brasil de Fato
Desde que despontou na televisão, a apresentadora e chef de cozinha especializada em culinária natural, Bela Gil, tem seu nome associado a alguma polêmica. Seja por servir melancia como “churrasco”, por escovar os dentes com cúrcurma em vez de pasta de dente, ou por declarar que comeu a placenta do filho mais novo após o parto.
Pouco a pouco, as polêmicas deixaram de envolver apenas seus hábitos de vida, considerados peculiares. A cada dia, Bela tem assumido um discurso mais politizado. Durante as eleições presidenciais de 2018, se posicionou de maneira explícita nas redes sociais – e não deixou de fazê-lo, após a vitória de Jair Bolsonaro (PSL).
“As pessoas às vezes falam: ‘Adoro sua comida, mas fiquei muito triste em saber da sua posição política’. Ou, quando posto alguma coisa que tem a ver com a política, dizem: ‘Que decepção! Estou aqui para ler sobre alimentação e não sobre política’. Mas, no caso, uma coisa está totalmente relacionada à outra. Não é por uma questão pessoal com o Bolsonaro, é um fato. Eu tenho que falar, tenho que avisar a população que o governo dele aprovou o uso de mais de 80 agrotóxicos em duas semanas, por exemplo. É o meu papel”, afirma.
Bela recebeu a reportagem do Brasil de Fato na casa do pai, o cantor e compositor Gilberto Gil, no Rio de Janeiro (RJ), horas antes do lançamento de seu quinto livro. A publicação “Da raiz à flor” traz receitas com casca de melancia, com semente de mamão, com folhas de couve-flor e ramas da cenoura. A ideia, segundo a apresentadora, é ensinar as pessoas a utilizarem partes dos alimentos que são descartadas e, assim, debater o desperdício.
Por outro lado, ela reconhece que existe um problema sistêmico, relacionado ao acesso à terra e ao modo de produção dos alimentos: “Reforma agrária mais agroecologia é igual a alimentação democrática. Sem isso, fica muito difícil”.
Bela acredita que sua cozinha está cada vez mais política – segundo a apresentadora, é impossível separar os dois aspectos. “Ainda mais no momento extremo que estamos, de um governo fascista, com a democracia ameaçada, com o ódio pairando no ar. Apesar de eu não gostar de me rotular, atualmente eu acho necessário. Então, hoje eu sou totalmente ‘Lula livre’, sou totalmente de esquerda, sou feminista. Sou essa pessoa hoje, porque acho que é uma forma de a gente juntar forças e, de uma maneira ou de outra, tentar achar o caminho do meio”, explica.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Você sempre falou sobre aproveitamento dos alimentos e democratização da alimentação saudável, mas pela primeira vez publica um livro especificamente sobre esses temas. O que motivou essa escolha?
Bela Gil: Venho trabalhando com culinária há muitos anos, e depois de 10 temporadas do programa “Bela Cozinha” [no canal GNT] eu decidi focar na questão do desperdício para poder chamar atenção das pessoas para esse problema. Cerca de um terço da comida produzida no mundo é desperdiçada, e quando a gente fala de frutas, legumes e verduras, esse número pode chegar a 50%. É muita coisa jogada fora!
Esse desperdício acontece, em grande parte, em casa. Talvez com mais educação e mudança de cultura, nós, os consumidores possamos melhorar. Mas eu sei que é um problema sistêmico: a gente tem quase um milhão de pessoas passando fome no mundo e uma produção excedente de alimentos. Por que a comida não chega na boca de quem está com fome? É sistêmico, mas eu decidi falar na prática o que a gente pode fazer quanto a isso. Então, eu quis fazer essas receitas com parte de plantas e alimentos que iriam para o lixo.
Para democratizar a alimentação saudável no Brasil, não tem outra resposta a não ser a reforma agrária
Também tem a questão da economia. Muita gente fala que comer saudável é caro. Eu concordo, até certo ponto. Quando a gente fala de comida “limpa”, comida orgânica, a questão econômica influencia bastante. Mas, se você pagar um pouco mais na banana orgânica, não jogando a casca dela fora, você está basicamente gastando o mesmo dinheiro de uma banana com veneno, porque você só comeria parte dela.
É mito ou verdade que a “comida natural” é mais cara?
Eu diria que é um mito, mas tem também um fundo de verdade. A gente vive em um sistema em que oferta e demanda vão influenciar o preço final do alimento orgânico. Hoje ainda é muito escasso, então claramente o valor do orgânico vai ser mais caro, e o custo para se fazer alimento orgânico é muito maior.
Na agroecologia, você produz mais por hectare do que na produção convencional, isso é fato. E o sistema insiste em falar para a gente o contrário, dizendo que a gente precisa de veneno para alimentar o mundo. As pessoas precisam entender que, quando está comprando alimento orgânico, agroecológico, está investimento na própria saúde, mas também no meio ambiente, na saúde da terra, na saúde social também.
De fato, o orgânico ainda é mais caro por esses motivos. A gente precisa se conscientizar e entender que, a gente pagando esse preço, é muito mais que só um alimento. Mas, claro, não é todo mundo que pode fazer esse investimento hoje em dia.
Como democratizar a alimentação saudável no Brasil?
Para democratizar a alimentação saudável no Brasil, não tem outra resposta a não ser a reforma agrária. É imprescindível que a gente tenha uma distribuição de terras democrática.
Na agroecologia, se produz mais por hectare do que na produção convencional
A comida vem da terra. Se a gente não democratizar a terra, como vamos ter alimentação democrática? Impossível. No Brasil, 46% das terras cultiváveis estão nas mãos de 1% da população. É uma desproporção enorme. Então, para democratizar a alimentação é preciso que a gente democratize o espaço no qual a gente planta a comida, que é a terra.
Nesse sentido, investir em agroecologia é um dos principais caminhos?
Com certeza absoluta. A agricultura convencional produz menos por hectare do que a agroecologia, só que a agroecologia só funciona em pequena escala. Monoculturas gigantes não funcionam no princípio da agroecologia. Na verdade, é o oposto disso. Precisamos de uma melhor distribuição de terras para que a gente precise implementar a agroecologia na produção de alimentos.
A gente precisa de espaços menores de terra para produzir mais tipos diferentes de alimentos e, com isso, produzir com mais abundância. Isso a agroecologia já comprova. Se você pega por hectare, a agroecologia produz mais. Acho que a matemática é a seguinte: reforma agrária mais agroecologia é igual a alimentação democrática. Sem isso, fica muito difícil.
Você acredita que estamos fazendo o caminho inverso, com o governo Bolsonaro?
Em uma das últimas entrevistas que eu dei, me perguntaram sobre o governo atual e eu respondi que queria muito ouvir mais do presidente e suas posições em relação a isso, porque não se fala. A gente vê a aprovação de mais de 80 agrotóxicos em poucos dias de governo, a extinção do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar], e tudo isso faz com a gente fique desestimulada.
Estamos realmente andando para trás, e isso é muito triste. Quem está ganhando com a liberação de agrotóxicos não é a população. Eu sempre falo: quem nos alimenta hoje é quem nos medica. Eles nos alimentam com veneno para inventar um remédio novo para medicar a população. É um ciclo que poderia ser interrompido se a gente desse ênfase ao que falei anteriormente: reforma agrária, agroecologia, educação alimentar. A gente tem políticas públicas incríveis. A questão mesmo é a vontade dos políticos de colocá-las em prática.
O Brasil lidera o uso de agrotóxicos no mundo. Essa realidade se intensificou com o governo Temer (MDB), e com Bolsonaro a tendência é aumentar o uso. Qual o limite? Não temos para onde escapar?
A gente está no Congresso com dois pesos e duas medidas: o Pacote do Veneno de um lado e a PNaRA [Política Nacional de Redução dos Agrotóxicos] de outro. A gente precisa fazer pressão para que o PNaRa seja aprovado, e fazer com que o PL do veneno seja reprovado. É o que a gente consegue fazer para estabilizar essa situação. Se a gente tiver o PNaRa não aprovado e o PL do veneno aprovado, estaremos realmente indo por água abaixo.
Muita gente não sabe que a gente tem esses projetos na Câmara, não sabem o que podem fazer enquanto indivíduos, como melhorar esse quadro. Muita gente fala que queria comer melhor e não consegue, não pode. A gente precisa estimular a população a enxergar isso como prioridade.
Acredito que a alimentação é a base da nossa vida. Se a gente não presta atenção nisso no cenário político, a gente não está prestando atenção na vida.
Como lutar por democracia alimentar diante de um governo autoritário?
Minha vontade sempre foi de transformar de baixo para cima. A força somada de “um mais um” é o que pode provocar mudança. Recentemente, eu percebi a necessidade de uma mudança global do sistema para que isso aconteça. Essa mudança de cima para baixo está parada. Nada vai mudar de bom de cima para baixo, então a força que precisamos fazer individualmente é muito grande.
A responsabilidade social de uma pessoa privilegiada que pode investir em produtos orgânicos, que pode investir em uma boa alimentação, que pode comprar direto do produtor, deve ser assumida. Não adianta falar que quer mudança se você não mudar. O mínimo que você pode fazer já é alguma coisa.
O que a gente pode fazer hoje é dar a mão para quem está ao lado e fazer a mudança acontecer de baixo para cima, porque de cima para baixo não tenho esperança. A gente vai ter que esperar pelo menos quatro anos para tentar mudar.
Você acredita que utiliza e apresenta a cozinha de forma revolucionária?
Eu ficava receosa de falar isso, mas agora, vendo em retrospectiva, não me incomodo em falar que é uma cozinha revolucionária, porque eu vejo e sinto que as pessoas vêm mudando. Antigamente, você falava disso e era taxado de natureba, hippie e esquerdista. Agora é “cool”. Tem gente de todos os tipos, todas as raças, as classes. Ser vegano, vegetariano, comer consciente, não está dentro de uma caixinha só. Todo mundo pode ser assim – da esquerda à direita. Enfim, isso é algo que eu sinto, a revolução.
Eu venho falando para um público muito extenso, não só um tipo. A demanda também mudou. No mercado, você vê óleo de coco, linhaça, painço, até leite de amêndoa de caixinha. Eu comecei na tevê fazendo leite da própria amêndoa. Eu acho que a revolução é essa: uma coisa muito assustadora, que depois de um tempo se torna natural.
Isso é revolução, mas não basta para mim: eu quero muito mais.
Sempre falo que minha cozinha está cada vez mais política. Sempre foi culinária consciente, baseada na natureza, mas é essencialmente política. Eu uso a cozinha e encaro o ato de comer e cozinhar como um ato revolucionário. É um ato de transformação positiva para a população e permeia tudo: uma mudança cultural, social, ambiental, tudo isso. Posso dizer que a minha culinária é revolucionária.
Segundo Bela Gil, se reconhecer como feminista não foi automático: “Eu fui lendo mais e entendendo sobre. Eu entendi que as coisas que eu fazia por intuição, por amor à minha feminilidade, eram atitudes feministas”. (Foto: José Eduardo Bernardes)
Procurando sobre o livro, eu li uma reportagem que tinha como título “Novo livro da Bela Gil tem receitas até com cascas de banana”. Na internet, você costuma ter seu nome relacionado ao que é peculiar, polêmico, memes. Como lida com isso?
A polêmica me ajudou muito, porque carregou uma mensagem. Talvez, se não tivesse a polêmica, não teria uma força tão grande. Então, agradeço pelas polêmicas, porque ampliaram a minha voz. Muitas pessoas me conheceram por causa do meme do “churrasco de melancia”. Então, só tenho a agradecer.
Eu acho que quem faz a polêmica não sou eu: são as outras pessoas. Entendi também que muita coisa que era natural para mim, não era para as pessoas. Colocar melancia na grelha para mim, eu sempre fiz, meus amigos comem e acham a coisa mais maravilhosa, é normal. Entendi que não era normal para muita gente.
Eu comi minha placenta e tenho várias amigas que comeram, ou fizeram cápsula para tomar a placenta. Tenho amigas que usam o copinho [no lugar do absorvente], enfim, coisas no meu entorno que eram muito naturais. Quando eu falava isso, eu via uma reação de espanto, medo, nojo, uma reação negativa muito grande. Entendi que um dia isso também foi surpresa para mim, então, o que eu estou falando hoje pode e é surpresa para muita gente.
Talvez tenha mudado minha forma de comunicar, me fazendo entender de que tudo isso possa causar polêmica, só por ser diferente. Mas as polêmicas me ajudaram muito.
Você acredita que seu jeito de se comunicar e apresentar a culinária colabora para mudar, em algum sentido, a visão sobre o papel da mulher na cozinha?
Eu acho que sim, porque essa questão de gênero na culinária e na cozinha sempre foi muito machista. Os chefes renomados são sempre homens, já a cozinha do dia a dia sempre esteve na mão da mulher, tendo como referência figuras como a Palmirinha, Ana Maria Braga, mulheres que estão sempre a disposição para cozinhar.
Isso tem mudado, não só com o meu programa. A cozinha ficou pop para homem e PARA mulher. Não tem mais “menina não pode ser chef de restaurante” e nem “menino não pode fazer comida para a família”. Eu não daria crédito para mim e meu programa, mas para a revolução da culinária no cenário mundial.
Você se considera feminista?
Eu fui me descobrindo feminista ao longo do meu trabalho. Meu marido sempre falou isso para mim. Eu tenho um problema com rótulos, mas ele foi me convencendo. Eu fui lendo mais e entendendo sobre. Eu entendi que as coisas que eu fazia por intuição, por amor à minha feminilidade, eram atitudes feministas.
Se eu falo de comida sem veneno, como vou apoiar um governo que apoia a flexibilização da lei de agrotóxicos?
Eu tive meu filho em casa, comi minha placenta, larguei o absorvente, fiz uma marca de calcinhas de pano, fiz questão de compartilhar o momento do meu parto com outras mulheres para mostrar que ter um filho naturalmente é possível, bacana, não é todo esse terror que as pessoas colocam. Escrevi um livro sobre maternidade. Falo isso na questão da cozinha.
A primeira onda do feminismo que falava que a mulher tinha que sair de casa, não servir aos maridos… Hoje em dia, lugar de mulher é onde ela quiser. Eu me sinto muito bem cozinhando para a minha família. Do mesmo jeito que meu marido faz questão de trocar a lâmpada quando queima: não é uma questão de gênero, é preferência. Eu fui entendendo que se sentir bem com você mesma, sua profissão, seu corpo, não ter vergonha, não ter medo, são atitudes feministas. Então, eu falei: “Sou essa pessoa”.
Onde está a Bela Gil hoje, nessa sociedade tão polarizada?
Eu nunca gostei de me rotular, mas eu entendo que, para uma mudança, o radicalismo é importante. Eu mudei minha alimentação muito jovem. Era uma criança normal, que comida balas, chicletes, biscoitos recheados, o que a gente chama na cultura alimentar de “comida de criança”. Mudei minha alimentação na adolescência radicalmente. Hoje, eu posso dizer que sou uma pessoa muito mais flexível. Tenho consciência do que estou comendo. Ganhei consciência sobre minha alimentação.
Ter uma alimentação mais radical por um período é necessário para entender como você era antes e onde você quer chegar. Para achar o caminho do meio, é preciso entender os extremos. No Brasil, estamos passando por um momento extremo, de um governo fascista, com a democracia ameaçada, com o ódio pairando no ar. Hoje, apesar de eu não gostar de me rotular, acho necessário.
Em momentos de crise, acho que é escolha individual, mas eu preciso me rotular. Então, hoje eu sou totalmente “Lula livre”, sou totalmente de esquerda, sou feminista. Sou essa pessoa hoje porque acho que é forma de a gente juntar forças e, de uma maneira ou de outra, tentar achar o caminho do meio. Para a mudança, a crise é necessária. Não tem uma revolução, ou uma mudança, sem uma crise. Isso é história.
Isso é um peso para você?
Sempre vai ter um peso, mas a gente precisa entender o que vale mais. Seus valores? Seu amor a sua família? Seu amor à humanidade? A valorização do afeto, do meio ambiente da natureza? Isso tudo prevalece, e muito, em relação a um trabalho, contrato, seguidores. Prefiro estar no bolo do amor do que viver em cima do muro para ganhar mais dinheiro, seguidores, etc. Não é o que quero.
Você já sentiu algum tipo de rejeição, nesse sentido?
Com certeza. Desde outubro, não sei quantos seguidores perdi no Instagram! Em relação a trabalho, sou muito coerente. Ninguém que me contratasse pensaria que eu estou apoiando o governo atual. As pessoas sabem quem eu sou. Sou muito transparente em relação às minhas posições.
As pessoas às vezes falam: “Adoro sua comida, mas fiquei muito triste em saber da sua posição política”. Ou, quando posto alguma coisa que tem a ver com a política, falam: “Que decepção! Estou aqui para ler sobre alimentação e não sobre política”. Mas, no caso, uma coisa está totalmente relacionada a outra. Não é por uma questão pessoal com o Bolsonaro, é um fato. Eu tenho que falar, tenho que avisar a população que o governo dele aprovou o uso de mais de 80 agrotóxicos em duas semanas. É o meu papel. Não é porque é eleitor do Bolsonaro que tem que ficar chateado comigo.
Eu acho que as pessoas já esperam a minha posição. Isso é importante também. Se eu falo de comida sem veneno, como vou apoiar um governo que apoia a flexibilização da lei de agrotóxicos? Seria incoerente.
São as propostas, é tudo o que ele representa. Eu faria as mesmas críticas em relação a agrotóxicos, reforma agrária, alimentação, independentemente de quem estivesse no poder.