Calar é preciso

Sem a possibilidade de parar no Dia Internacional da Mulher, silenciei-me

Por Flávia Oliveira, do O Globo

Este ano, o Dia Internacional da Mulher foi de tributo ao silêncio. Inspiradas em ativistas da Polônia e da Argentina, que recentemente suspenderam atividades em defesa de direitos, feministas planeta afora propuseram para o 8 de Março 24 horas de paralisação em trabalho, estudo, afazeres domésticos, consumo. Nós, as onipresentes, sairíamos de cena. Sem a possibilidade de parar, silenciei-me. Atravessei o dia sem qualquer interação via correio eletrônico e redes sociais, porque calar é preciso —vai que alguém ouve. Findo o jejum, volto a dizer.

No Brasil, o movimento de mulheres mirou o combate à violência de gênero, a ameaça a direitos sociais e a construção de igualdade no mercado de trabalho. O país enfileira estatísticas alarmantes de agressões domésticas, maus-tratos, abuso sexual, feminicídio. A cada cinco minutos, uma mulher é agredida; a cada 11 minutos, uma é estuprada; a cada duas horas, morta. No carnaval passado, a Polícia Militar do Rio de Janeiro registrou uma ocorrência a cada quatro minutos. Já o serviço nacional Ligue 180 recebeu, em quatro dias, 1.160 denúncias de violência física, 109 de agressão sexual.

O país tem a quinta maior taxa de homicídios de mulheres (4,8 casos por cem mil habitantes do sexo feminino) numa lista de 83 nações, segundo o Mapa da Violência 2015. Uma em cada três foi vítima de parceiro ou ex. Em uma década, o número de negras assassinadas saltou 54%. Além disso, por ano, quase 30 mil rapazes de 15 a 29 anos são mortos — seus filhos, namorados, companheiros, maridos.

Na conjuntura de crise econômica e restrição fiscal de União, estados e municípios, órgãos dedicados aos direitos das mulheres foram extintos, desidratados, incorporados, secundarizados. A agenda dos direitos sexuais e reprodutivos — aqui e lá fora — é crescentemente apropriada por homens com posições políticas, morais e/ou religiosas conservadoras. A representação feminina nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é modesta, bem como no topo de funções executivas.

Os arranjos familiares perpetuam desigualdades. Dias atrás, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) informou que, nas duas últimas décadas, a proporção de mulheres e homens dedicados a afazeres domésticos não se mexeu. Entre elas, nove entre dez cuidam da casa, dos filhos, dos idosos; entre eles, 50%. A sobrecarga domiciliar rende sete horas e meia a mais de jornada semanal ao sexo feminino.

O mercado de trabalho é pontuado de distorções. As mulheres são maioria da população, mas não nas vagas disponíveis. “O IBGE produz dados para Brasil, cinco regiões, 27 estados e capitais, 21 regiões metropolitanas. Em nenhuma área as mulheres são maioria entre os ocupados. Você pode dizer que isso acontece porque elas não querem trabalhar. Mas não é verdade, uma vez que a taxa de desemprego delas é maior (13,8%, contra 10,7% dos homens). A mulher tem mais dificuldade de conseguir emprego”, afirma Cimar Azeredo, coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE.

No indicador de subutilização de mão de obra, o sexo feminino também aparece em desvantagem. Uma em cada quatro (26,3%) procura ocupação, tem horas disponíveis para trabalhar, mas não consegue preenchê-las ou está impossibilitada de assumir algum posto por questões de saúde ou atribuições do lar. Entre os homens, a proporção é 18,9%. A distância salarial é outra constante. Na série da Pnad Contínua, a razão de rendimento entre eles e elas diminuiu modestos quatro pontos percentuais, de 2012 a 2016. Hoje, para cada real recebido por um homem, uma mulher ganha R$ 0,78.

<SW,-16>O Brasil tem 38 milhões de mulheres trabalhando. Muito da desigualdade de renda tem a ver com a qualidade da posição que ocupam. São celetistas dos setores público ou privado — portanto, cobertas por benefícios trabalhistas e previdenciários — 41,5% da mão de obra feminina. Profissionais autônomas, empregadas sem carteira assinada ou auxiliares em negócios familiares somam 43,9% das mulheres ocupadas. E os dados nem levam em conta os 3,9 milhões de trabalhadores domésticos informais. Há mais mulheres trabalhando em casas de família (5,7 milhões) do que na indústria (3,9 milhões), que costuma concentrar melhores cargos e salários.<SW>

Por tudo isso, mulheres compõem parcela vulnerável da população — em particular, as autodeclaradas pretas ou pardas. É diagnóstico preocupante na conjuntura que combina reforma do Estado e restrição orçamentária. Por terem renda menor, dependem mais dos serviços públicos de educação, saúde e assistência social, em franco arrocho. Se entram no mercado de trabalho pela porta da informalidade, terão mais dificuldades para acumular os anos de contribuição propostos no redesenho da Previdência anunciado pelo governo federal. Gênero e raça, portanto, precisam fazer parte do debate sobre prioridades orçamentárias, pensões e aposentadorias.

Está dito.

 

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