Um dos grandes objetivos das ciências modernas e contemporâneas — alicerçadas no que significaram as revoluções de ideias que culminaram em mudanças de paradigmas na Física e na Astronomia do século XVII — é construir cosmologias, realidades, representações de mundo. No entanto, embora negado, as ciências como construção humana não são neutras, puras, ingênuas, ateóricas e ahistóricas, desconectadas da ação (cosmo)política. Essas cosmologias científicas estão imbricadas na organização de sistemas globais do pensamento ocidental — colonialismo, capitalismo e patriarcado — no âmbito do que se caracteriza como Modernidade, que, em última instância, está atrelada à razão branca, à máxima eurocêntrica do “penso, logo existo”, em que o racismo tem sido o amálgama e o operador fundamental.
Nesse sentido e na relação dialética com a construção histórica das ciências, a negritude, termo cunhado por Aimé Césaire em 1939, tem sido desconsiderada, inferiorizada, invisibilizada, silenciada, exterminada das ciências, e os corpos negros, destituídos de pensamento, do lugar de protagonismo de produção do conhecimento científico e tecnológico no Brasil e no mundo. O epistemicídio (Sueli Carneiro), que se constitui um grande desafio para pensar ciência e negritude no Brasil do século XXI, tem sido uma tecnologia do racismo epistêmico, justificado e ancorado no racismo científico, que é, paradoxalmente, uma pseudociência.
Se levarmos em conta que vivemos num país majoritariamente negro — 56% da população, de acordo com o IBGE —, somente o racismo subjetivo, institucional e estrutural é capaz de explicar, como parte do ethos da (necro)política elitista, falocêntrica e brancocêntrica nacional, o completo descaso do Estado brasileiro com a educação básica pública, frequentada majoritariamente por pessoas negras – descaso que contribui para que o País apresente perturbadora sub-representação de pessoas negras nas ciências, em todas as áreas de conhecimento e, marcadamente, nas ciências exatas, engenharias e carreiras tecnológicas.
Nessa lógica colonial e de colonialidade do pensamento, o racismo estrutural à brasileira surge como um delírio e uma arma de manipulação do sistema supremacista branco para sufocar, sequestrar e exterminar corpos negros de lugares fundamentais da vida social brasileira, retirando-lhes cidadania. E como a ciência é também um lugar importante de disputa de poder por meio do conhecimento, a tomada de consciência da especificidade do ser e tornar-se negro — o que está no cerne da negritude como afirmação subjetiva e movimentação política antirracista — é crucial para questionarmos a triste realidade racializada da ciência brasileira, que não tem sido fomentada nem colocada como perspectiva ou possibilidade material e simbólica nos horizontes de realização profissional de pessoas negras.
Numa flagrante distopia, apesar de a maioria da população brasileira se autodeclarar negra e o país apresentar objetivamente a segunda maior população negra fora do continente africano, não podemos naturalizar que, em média, 90% dos/as docentes/pesquisadores/as em universidades e centros de pesquisas do Brasil sejam brancos(as) e menos de 2,5%, em média, de cientistas negros/as estejam ligados/as a programas de pós-graduação (Censos da Educação Superior). Esses dados revelam que, historicamente, o Estado brasileiro tem sistematicamente negado às pessoas negras o acesso à educação e à cultura e, portanto, à ciência; as pessoas negras têm tido suas contribuições históricas apagadas de livros de ciências, das epistemologias e metodologias científicas vigentes ou mesmo das narrativas apresentadas em centros e em outras mídias de comunicação e divulgação de ciências.
Sendo assim, admitir que as cosmologias científicas são racializadas em todas as áreas do conhecimento é entender como a linguagem, um dos maiores fetiches da Modernidade, opera o tempo inteiro, definindo, a partir da Europa (e de suas filiais globais), quem é “negro” e “indígena”, tratados sempre como (epistemologicamente) inferiores em relação aos denominados “brancos”. É nesse processo de construção política antirracista que ciência e negritude são aqui pensadas: cada um/a, numa viagem subjetiva, precisa compreender, por meio da ciência, de que forma os processos históricos, sociais e epistêmicos têm fomentado o domínio de pessoas brancas nas ciências, garantindo e distribuindo privilégios, no fortalecimento de poderosas redes de conhecimentos, únicos reconhecidos como “válidos”.
Pensar ciência e negritude é se dar conta, de forma objetiva e sem mimimi, que as ciências e as tecnologias têm sido historicamente, sobretudo no Brasil, uma ação afirmativa para pessoas brancas, homens em sua maioria, cis, heterossexuais, bem nascidas a certas latitudes do norte e sul global. Essas “ações afirmativas” têm se articulado no âmbito do “pacto narcísico da branquitude” (Cida Bento), o qual explica em grande parte a ausência e/ou sub-representação de pessoas negras nas ciências.
O pretoguês, de Lélia Gonzalez, precisa nos ajudar a re(escrever) e a recuperar as histórias negras na ciência brasileira, cuja negritude potencializada e ressignificada na cultura africana e afro-brasileira, bem como na pedagogia dos povos originários, nos alerta sobre o perigo das “histórias únicas”, nos impõe novos marcos ontoepistemológicos e nos apresenta outras cosmopercepções que não são excludentes, cosmofóbicas (Nêgo Bispo) e medrosas de outras existências. Discutir negritude na ciência é sobretudo desvelar e posicionar a branquitude, contribuindo para a des(construção) subjetiva, institucional e estrutural dos nossos sistemas opressores de produção de conhecimento. Pensar ciência e negritude nos permite fomentar a diversidade, a igualdade e a equidade no ambiente científico e tecnológico para promovermos a educação antirracista como verdadeira marca de inovação, sinônimo de transformação social e de democracia no Brasil.