Com mais de 100 mil mortes, impeachment é imposição humanitária

Na contramão do sentimento da sociedade civil e da opinião pública nacional, expressas nos 55 pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro já protocolados na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), foi categórico ao afirmar que não vê crimes que justifiquem a abertura do processo.

A Coalizão Negra por Direitos, frente que reúne 150 organizações do movimento negro brasileiro, não só vê como sente, em nossos corpos e territórios, os crimes de responsabilidade cometidos por este presidente. Por isso, apresentará à Câmara o 56º pedido de impedimento a Bolsonaro. Mas o que nós enxergamos que Maia não vê ou finge não ver?

No Brasil, as mais de 100 mil mortes por Covid-19 têm cor, classe social e se dão em territórios de maioria negra. Os impactos sociais da pandemia, o desemprego e o desamparo por parte do governo atingem sobremaneira os mais pobres. É negra a maioria que depende do auxílio emergencial do governo para matar a fome de suas famílias, e são negros os milhares que tiveram negado o acesso a esse benefício.

Há um alto custo, sobretudo às mulheres negras. Com o desmonte das políticas e a sabotagem brutal no manejo dos programas sociais, são elas as mais excluídas das políticas de emergência, como aponta a historiadora Luciana Brito, em artigo no Nexo Jornal. Sofrem também nossas comunidades quilombolas, que tiveram negado através de veto de Jair Bolsonaro o acesso à qualquer recurso de sobrevivência na pandemia —seja água potável, cesta básica ou auxílio emergencial.

A taxa de cura da Covid-19 é 50% maior em hospitais privados, ao mesmo tempo que, em alguns casos, 90% dos que chegam à UTI em hospitais públicos não sobrevivem. Esses dados são autoexplicativos.

O número oficial de 100 mil mortos é provavelmente subnotificado, como apontam vários especialistas. Esse número espelha o aumento da miséria, a desesperança e a atuação genocida deste governo. Somam-se as outras dores e os corpos representados no aumento dos homicídios, nos casos de violência policial e na degradação como política de Estado para as unidades prisionais durante a pandemia.

Para além dos incontestáveis crimes atentatórios às instituições democráticas por parte do presidente, envolvendo proposição para que tropas tomassem o STF, informação recentemente noticiada pela revista Piauí, o pedido de impedimento apresentado pela Coalizão Negra aponta crimes de responsabilidade na violação dos direitos individuais e sociais por negligência ao combate à pandemia e na insuficiência de medidas que deveriam estar voltadas aos mais pobres, famílias negras, empregadas domésticas, trabalhadores informais, comunidades quilombolas e populações rurais negras, de favelas e periferias.

Bolsonaro minimizou a gravidade. Desprezou e impediu políticas de contenção. Gastou recursos públicos e promoveu criminosamente o uso, a produção e a distribuição de medicamentos cientificamente ineficazes contra a Covid-19, perigosos quando ingeridos para essa finalidade.

Verbalizou absurdos diante do sofrimento de milhares de famílias que perderam entes queridos para a doença: “E daí? Algum dia todo mundo vai morrer”; “Brasileiro mergulha no esgoto, sai e continua vivendo”; “Não sou coveiro. Problema de mortos não é comigo”. Não há dúvidas sobre a responsabilidade do presidente da República na catástrofe que vivemos.

No governo Bolsonaro, Maia se colocou como um defensor da democracia, das instituições, da autonomia dos Poderes e foi destaque por sua moderação na condução das crises provocadas pelo presidente, com seus ímpetos autoritários.

Assim, pedimos coerência. Rodrigo Maia, respeite os pedidos que aguardam sua análise. Construa a defesa da democracia pelo Parlamento em conjunto com a sociedade. Instaure o pedido de impedimento ao presidente e genocida Jair Bolsonaro, apresentado pela Coalizão Negra por Direitos, representação política do segmento majoritário da população brasileira.

Vossa excelência terá que escolher entre manter sua pose de democrata ou explicitar seu lugar de cúmplice de um governo genocida. Não se trata de um pedido de impeachment por capricho político, como foi feito por aqueles que apoiaram Bolsonaro na história recente. É um pedido de impeachment por nossas vidas, nosso povo e nossa democracia.

Omitir-se diante de 100 mil mortes é tão grave quanto promovê-las. Não subestime o poder da História. Enquanto houver racismo, não haverá democracia.


Douglas Belchior
Historiador, cofundador da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos

Sheila de Carvalho
Advogada internacional de direitos humanos e da Coalizão Negra por Direitos

Vilma Reis
Socióloga, cofundadora da Mahin Organização de Mulheres Negras e da Coalizão Negra por Direitos

Dudu Ribeiro
Historiador, cofundador da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas e da Coalizão Negra por Direitos

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