por: Celso Lungaretti
Fonte: Blog de um sem Mídia
Em abril do ano passado, 113 autoproclamados “cidadãos anti-racistas” endereçaram uma carta ao presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes para fazer lobby contra o programa ProUni e a instituição de cotas raciais compensatórias em vestibulares para universidades estaduais.
O movimento foi visivelmente inspirado nas teses de Ali Kamel, diretor de Jornalismo da Rede Globo e autor de Não Somos Racistas, livro de cabeceira de alguns dos piores porta-vozes da direita golpista na mídia brasileira.
Foi até constrangedor vermos, ao lado dos Reinaldos Azevedos da vida, alguns intelectuais e artistas que admirávamos ou, pelo menos, tinham nosso respeito: Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Gerald Thomas, João Ubaldo Ribeiro, José Goldemberg e Nelson Motta, dentre outros.
Igualmente constrangedora foi a intenção evidente de, usando o peso de suas assinaturas, pressionarem o STF a tomar decisão favorável a dois questionamentos judiciais das cotas reparatórias:
“Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.330 e ADI 3.197) (…) serão apreciadas proximamente pelo STF. Os julgamentos terão significado histórico, pois podem criar jurisprudência sobre a constitucionalidade de cotas raciais não só para o financiamento de cursos no ensino superior particular e para concursos de ingresso no ensino superior público como para concursos públicos em geral. Mais ainda: os julgamentos têm o potencial de enviar uma mensagem decisiva sobre a constitucionalidade da produção de leis raciais”.
Além disto, eles divulgaram um longo manifesto, com trechos beirando o ridículo, de tão alarmistas:{xtypo_quote} “as cotas raciais (…) ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais”; “passam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros”; um Estado racializado estaria dizendo aos cidadãos que a utopia da igualdade fracassou”, etc.
De bate-pronto, respondi-lhes com meu artigo As cotas raciais e os 113 tolos pomposos, criticando-os por estarem fazendo muito barulho por nada:
“O fato é que, em meio às terríveis distorções que o ensino superior vem sofrendo em função de seu atrelamento aos interesses capitalistas – começando por sua ênfase na especialização castradora que forja meros profissionais, desprezando a formação crítica e universalizante que engendra verdadeiros cidadãos -, eles magnificaram um problema menor, em detrimento, exatamente, ‘dos desafios imensos’ que dizem existir.
“Por que, afinal, nunca demonstraram idêntico empenho em relação a esses desafios imensos? A carapuça de estarem desviando as atenções do fundamental não lhes caberia melhor do que aos seus adversários?”.
E lhes pedi que dessem tempo ao tempo, para que todos pudéssemos aquilatar qual seria o saldo dessa experiência:
“Para não embarcarmos numa discussão interminável e que talvez nem sequer comporte uma conclusão inequívoca, vamos admitir que negros e pobres tenham suas oportunidades reduzidas em função da desigualdade e da desumanidade que caracterizam o capitalismo no Brasil; e que os negros enfrentem dificuldades maiores ainda que as dos outros pobres.
“Então, para os seres humanos justos e solidários, pouco importa se os negros estão em desvantagem por causa da escravidão passada ou por encontrarem-se hoje sob o fogo cruzado do capitalismo e de um racismo dissimulado, mas não menos real. Merecem, sim, que os pratos da balança sejam reequilibrados em seu favor.
“Quanto à eficácia das políticas compensatórias, ela só poderá ser realmente aferida depois de um período razoável de implementação. Por que, afinal, abortarmos essa tentativa no nascedouro?”.
Pois bem, a prova dos nove já foi tirada e o resultado, muito bem dissecado na coluna desta 4ª feira (17) do Elio Gaspari, A cota de sucesso da turma do ProUni , conforme se pode constatar nestes trechos:
“Ao longo dos últimos anos o elitismo convencional ensinou que, se um sistema de cotas levasse estudantes negros para as universidades públicas, eles não seriam capazes de acompanhar as aulas e acabariam fugindo das escolas. Lorota. Cinco anos de vigência das cotas na UFRJ e na Federal da Bahia ensinaram que os cotistas conseguem um desempenho médio equivalente ao dos demais estudantes, com menor taxa de evasão.
“…pela segunda vez em dois anos, o desempenho dos bolsistas do ProUni ficou acima da média dos demais estudantes que prestaram o Provão. Em 2004, os beneficiados foram cerca de 130 mil jovens que dificilmente chegariam ao ensino superior (45% dos bolsistas do ProUni são afrodescendentes, ou descendentes de escravos, para quem não gosta da expressão).
“O DEM (ex-PFL) e a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino foram ao Supremo Tribunal Federal, arguindo a inconstitucionalidade dos mecanismos do ProUni. (…) O caso ainda não foi julgado pelo tribunal, mas já foi relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto, em voto memorável. Ele lembrou um trecho da Oração aos Moços de Rui Barbosa: ‘Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real'”.
De resto, meu ponto-de-vista continua sendo o de que as cotas, mesmo significando um avanço (e devendo, portanto, ser defendidas e mantidas), nunca passarão de um paliativo, pois a verdadeira solução passa também pela igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e na sociedade, bem como pelo melhor direcionamento dos esforços de todos, negros e brancos:
“Entre os partidários da competição insensível entre seres humanos movidos pela ganância e os cidadãos decentes que procuram minorar as mazelas do capitalismo, eu me alinharei sempre com estes últimos. Mas, sem ilusões: as injustiças só serão realmente erradicadas quando o bem comum prevalecer sobre os interesses individuais, numa nova forma de organização social”.
Matéria original: Cotas Raciais-xeque-mate nos 113 autoproclamados “cidadãos anti-racistas”