Creche na pauta do feminismo negro

“Falar de mulheres negras é essencial para a luta feminista. Reconstruir caminhos e dar visibilidade a vozes consideradas implícitas dentro da normatização hegemônica, também. Logo, falar de luta por creches é essencialmente falar de mulheres que mais sofrem com a omissão do Estado e se veem desamparadas em vários sentidos e com menos possibilidades de transcendência. Há uma relação direta entre trabalho escravo e escravismo; os direitos negados e a situação de pobreza da maioria da população negra são decorrência de uma estrutura social herdeira do escravismo”. (DJAMLIA RIBEIRO, 2018, p. 62)

Enviado para o Portal Geledés 

Divulgação/ Porque a creche é uma luta das mulheres?

 

O livro, Por que a creche é uma luta das mulheres? Inquietações feministas já demonstram que as crianças pequenas são de responsabilidade de toda a sociedade! É resultado das discussões e debates promovidos ao longo da disciplina optativa Direito à Infância e à Educação: Educação Infantil em creches, uma história das mulheres, ministrada por Amelinha Telles e com a supervisão de Ana Lúcia Goulart de Faria, no do curso de licenciatura em Pedagogia, a disciplina só foi possível ser realizada por meio do edital da Pró-reitoria de Graduação da Unicamp. Durante o curso, foram colocados em pauta atualidades dos feminismos contemporâneos, em particular das questões mais candentes que surgem hoje, com muito vigor e intensidade, entrelaçadas com a perspectiva de classe, étnico-racial e sexualidades /gênero, com destaque aos recém-criados coletivos feministas nas periferias e nos meios escolares. Levanto algumas das vertentes feministas, em particular as mais ligadas aos movimentos populares de mulheres.

Ao longo de toda a obra, a creche é colocada em foco como um espaço para as crianças viverem experiências coletivas pautadas em relações horizontais, que visem à promoção da equidade, ao mesmo tempo em que é realçada a luta do movimento feminista pela sua construção, colocando em xeque a divisão sexual do trabalho e a maternidade compulsória, bem como destacamos a importância de se analisar as relações sociais a partir da intersecção entre raça, classe, gênero e idade. Elementos estes que prescrevem a necessidade de se pensar a creche não como um dado, mas como um espaço de direito, e que deve ser construído coletivamente.

No capítulo Feminismos e estudos sobre mulheres e gênero no Brasil: um olhar a partir das articulações presentes na luta por creches, Regina Facchini recupera alguns pontos na trajetória da relação entre estudos feministas, gênero e movimento feminista no Brasil pós-anos 1970. Parte de uma perspectiva que considera as articulações entre gênero e outras diferenças, como raça e classe, presentes na luta por creches. Para tanto, recupera alguns pontos no debate teórico referenteao conceito de gênero que permitem pensá-lo de modo articulado a outras diferenças sociais.

Djamila Ribeiro, no capítulo Feminismo negro como perspectiva emancipatória, destaca que falar da luta por creches é essencialmente falar de mulheres que mais sofrem com a omissão do Estado e se veem desamparadas em vários sentidos e com menos possibilidades de transcendência.   Como destaca a autora, essas mulheres são em sua maioria, negras e pobres, e sofrem com a falta de vagas nas creches, precisando lutar para ter onde deixar seus filhos. Ao longo do seu capítulo, aponta que pensar numa luta feminista sem prensar nessas mulheres é ineficiente.

No capítulo Por uma educação antirracista desde a creche!, Márcia Lúcia Anacleto de Souza, em meio à defesa da superação das desigualdades raciais na educação, aborda o significado e os desafios para a Educação Infantil e, especialmente, para a creche, no que tange à educação das relações étnico-raciais. Apontando aspectos para a reflexão a respeitoda relação entre a importância de abordar a temática no cotidiano desta etapa da educação brasileira, considerando fundamental uma política de formação articulada à defesa da creche pública e de qualidade.

No capítulo O feminismo marxista e a demanda pela socialização do cuidado para com as crianças, Joana El-Jaick Andrade têm por escopo analisar as discussões levantadas pelos defensores dos direitos das mulheres nas fileiras marxistas que lograram desnaturalizar o papel ocupado pelas mulheres na divisão social de trabalho, questionando sua exclusão da esfera pública e seu confinamento no lar. Deste modo, atrelaram a possibilidade de emancipação feminina à socialização do trabalho doméstico e do cuidado para com as crianças, no âmbito de uma sociedade sem classes.

Adriana A. Silva e Elina Elias de Macedo, no capítulo Creche: uma bandeira da despatriarcalização, propõem a defesa da creche como um dos elementos- chave de despatriarcalização do estado, favorecendo a participação social e política das mulheres como trabalhadoras, tanto mães, como as professoras e educadoras de bebês. Bandeira de muitos dos movimentos feministas, a luta por creches compôs a pauta de luta do passado e está presente ainda hoje como reivindicação fundamental das mães trabalhadoras e dos movimentos que atuam em defesa dos direitos das crianças.

No capítulo A Creche em tempos de perdas de direitos!,de minha autoria,são destacadas algumas inquietações no processo pós-constitucional, que possibilitaram ampliar e consolidar a creche que ganhou status de política pública e se tornou pauta da agenda voltada principalmente para a educação. As políticas pós-constituição de implementação das creches, no entanto, levaram à redução dos direitos constitucionais das crianças pequenas, ao dividi-las em dois grupos: um de 0 a 3 anos (creche) e o segundo de 4 a 5 anos (pré-escola).  Hoje a creche é uma realidade inegável, mas ainda está longe de alcançar as perspectivas de um espaço em defesa da equidade e de ações despatriarcalizadoras, antirracistas e sexistas.

Já o capítulo Por que um capítulo para apresentar uma pesquisa sobre creches no local de trabalho, realizada em 1983? traz os resultados da pesquisa inédita, até então, realizada pela Comissão de Creche do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo (CECF), no ano de 1983, publicado pela primeira vez com título Creches e Berçários nas Empresas Paulistas, no Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Naquele tempo, no estado de São Paulo, havia por volta de 60 mil empresas e apenas 38 tinham creches ou berçários. Os dados apresentados na ocasião tiveram o efeito de uma denúncia política do não cumprimento da legislação trabalhista. Hoje, 30 após a Constituição Federal de 1988, a creche no local de trabalho sobrevive em número irrisório. Menos de 5% das empresas têm creches e o vale-creche tem valores aquém do preço do mercado.    

Clélia Virginia Rosa, no capítulo Creche, raça e classe: relações complexas numa creche de empresa privada, aborda a creche de empresa privada como um cenário de relações complexas, protagonizadas por mulheres, com diferentes posições socioeconômicas e diferentes pertencimentos racial. O texto também aponta como a imprensa, por intermédio de jornais de grande circulação, foi abordando a temática das creches nos locais de trabalho; num primeiro momento, trazendo o protagonismo das mulheres na luta pela creche como direito trabalhista e, décadas mais tarde, o protagonismo sendo direcionado à empresa, por inserir a creche como item de seu pacote de benefícios.

Flávio Santiago e Ana Lúcia Goulart de Faria, no último capítulo, intitulado Da descolonização do pensamento adultocêntrico à educação não sexista desde a creche: por uma Pedagogia da não violência, partem da inspiração de uma iniciativa construída por docentes italianas em uma creche da cidade de Bologna – Itália, no dia da Jornada Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher, buscando estabelecer conexões transnacionais na luta contra as opressões hetero-patriarcais, bem como destacam a necessidade de garantia ao direito à fala e representatividade, de modo a romper com as estruturas coloniais “que nos ensinaram a catequizar” didaticamente formas de vida, tanto quanto acreditar na existência de uma única verdade que prescreve um modo de ser e estar no mundo.

 

Dados do livro:

 

Maria Amélia de Almeida Teles; Flávio Santiago; Ana Lúcia Goulart de Faria (Orgs.)

 

Porque a creche é uma luta das mulheres? Inquietações femininas já demonstram que as crianças pequenas são de responsabilidade de toda a sociedade. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018. 292p.

 

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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