“Quando eu vi que a primeira ação do governo foi dividir a FUNAI em dois ministérios (o ministério da família com a doida da goiabeira e o ministério da agricultura com a louca da motosserra), eu entendi que se tratava da caçada aos últimos socialistas. No Brasil nunca teve socialismo, nunca teve comunismo, nunca teve uma experiência de fato disso para você dizer ‘vou caçar comunistas’. Os únicos comunistas no Brasil chamam-se povos indígenas. São esses que não mantém propriedade privada, que são pelo coletivo, que têm um modo de vida simples, que dividem tudo entre si. Aí eu entendi quais eram os socialistas que estavam sendo perseguidos [pelo governo Bolsonaro]. São aqueles que ainda seguram a fronteira do capitalismo, que se chocam frontalmente com isso. É a última fronteira a ser conquistada. É aquilo que os militares tentaram fazer, nos anos 70, e não conseguiram.Nesse sentido os últimos socialistas somos nós.”
Daniel Munduruku, 56, é socialista duas vezes, segundo seu conceito: por nascença e por opção. Indígena do povo Munduruku, Daniel nasceu em Belém, e passou os primeiro sete anos de sua vida na aldeia Maracanã, interior do Pará. No final de 2019, foi procurado por um vizinho na pequena cidade de Lorena (SP) onde vive atualmente. O tal vizinho, um português filiado ao PC do B, tinha a missão de formar um grupo de vereadores de esquerda com chances de se elegerem no município do interior paulista.
Munduruku não se fez de rogado, disse que não se candidataria para nada menos que prefeito. Acordo feito, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil e é, portanto, pré-candidato à prefeitura de Lorena. Diz, confiante, que vai ganhar: “Eu sempre tive uma vontade de experimentar a coisa [da política partidária]. Porque a gente sempre fala muito mal de político, mas só é possível mudar alguma coisa de fato, em termos de políticas públicas, quando se é político”.
Padre ou Pajé?
Vivendo na periferia de Belém, no bairro da Sacramenta, Munduruku foi “uma criança feliz, aliás, como todas deveriam ser”, trepado em mangueiras em flor, que lhe forneciam deliciosos frutos, e divertindo-se com os pés cravados nos quintais da vizinhança. As memórias ruins surgem quando a escola dos brancos vem à recordação. Apesar de todos ali se parecerem com ele, Daniel foi apontado como “índio”, pelos coleguinhas, por ter vindo de uma aldeia de fora de Belém. No começo, não entendeu aquela palavra: “índio”. Tampouco as risadas dos meninos que compartilhavam com ele a pele bronze, os olhos puxados, os cabelos negros lisos.
Não sabia o que era ser “índio”, costumava achar que era “gente” mesmo. Matutou, então, que “índio” era o nome de algum passarinho que ainda não conhecia, até entender que a piada de que todos riam era ele. Em seu livro “Memórias de índio: uma quase autobiografia” (Edelbra, 2016) existe um capítulo chamado “Nunca gostei de ser índio” que narra o pesado bullying e a discriminação racial de que Munduruku foi alvo na infância.
Daniel estudou a vida toda em escolas dos padres salesianos, onde aprendeu o ofício de gráfico offset. Aos quinze anos tornou-se noviço. Encantado pelo trabalho social da ordem de Dom Bosco, o garoto das pernas rápidos, treinadas nas matas e quintais, portanto bom de bola, resolveu ser padre.
Na “Escola Salesiana do Trabalho”, onde os meninos chegavam de dia e ficavam até de noite, os alunos também fazia pequenos serviços como lavar louça e ajudar na limpeza. Em uma dessas incursões, Munduruku foi limpar a biblioteca dos padres o que abriu sua cabeça para os livros. Mas o líder indígena confessa que até hoje não é um leitor compulsivo:
“Prefiro ver televisão”.
“Sério? E o que você gosta de assistir na televisão?”
“Filmes de ação. Eu me amarro”.
Daí vem a inspiração para aventuras ameríndias de Munduruku, como “O Olho da Águia” (Ed. Leya, 2013), nascido originalmente como roteiro cinematográfico, e “O Karaíba: Uma história do pré-Brasil” (Ed. Melhoramentos, 2010) – que narra, de maneira envolvente, a vida dos tupinambás antes da chegada dos europeus. Caraíbas eram pajés errantes que vagavam de aldeia em aldeia fazendo profecias e, no caso dos guaranis, prometendo encontrar a “Terra sem males”. Entre Deus e Tupã, os sacerdotes indígenas têm um papel importante na literatura do indígena que quase virou sacerdote da religião dos brancos.
“O menino que não sabia sonhar é o conto que abre o [meu primeiro] livro Histórias de Índio (Companhia das Letrinhas, 1996). Era um menino com um dom para ser pajé, mas nasceu com um defeito de fabricação: não sabia sonhar. E uma das características de um pajé munduruku é poder sonhar. Tem que ter esse dom de interpretar sonhos. Entre os munduruku todos os meninos nascem com o dom da pajelança. As mães que vão até o pajé, quando as crianças nascem, pedir para eles não desenvolverem esse dom.”
O menino Munduruku – nascido com dom para pajé, portanto – queria ser santo. Dedicava-se aos esportes, era muito tímido, tinha “pé atrás” com a cidade. Hoje tergiversa: “Não posso dizer que não acredito em Deus, ainda que não acredite. Sei que existe uma força para além da gente. Isso está na floresta, está na natureza, no pôr do sol.”
Depois que saiu do seminário, ao terminar a faculdade salesiana em Manaus (AM), passou a dar aulas. Precisou, no entanto, de uma validação do diploma de seminarista para seguir como professor. Em Lorena, onde fez parte do noviciado, foi terminar os estudos de pedagogia em uma das faculdades dos Salesianos, licenciando-se para dar aulas de psicologia e história. Na cidade do interior paulista, apaixonou-se e casou virgem, já com mais de vinte anos.
O homem dos 53 livros
Daniel Munduruku ostenta o impressionante número de 53 livros escritos e publicados em 56 anos de vida. “Eu escrevo em qualquer canto. Geralmente as histórias vem de uma vez. Nunca fui muito disciplinado para isso.” Depois de ser jubilado em um mestrado marcado por uma série de turbulências, inclusive a morte de sua orientadora, Daniel fez doutorado na USP. Doutor Munduruku, o educador, foi quem deu à luz o escritor Daniel Munduruku.
“Eu não tinha muito a intenção de escrever e publicar. Eu tinha começado a contar histórias para crianças em escolas e as crianças sempre me faziam as perguntas mais cabeludas possíveis, próprio das crianças. Uma vez uma menina me perguntou onde encontrava aquelas histórias para ler. E aquela pergunta eu não sabia responder. Aquilo acendeu uma luzinha na minha cabeça: se essas histórias não estão contadas, por que não contá-las? Por que não escrevê-las?”.
Quem abriu os caminhos para que essa semente de livro se tornasse uma floresta densa de obras literárias foi a historiadora e escritora Lilia Schwarcz, uma das fundadoras da Companhia das Letras, professora de Daniel na USP. Foi a prestigiada editora que lançou o infantil “Histórias de índio”, estreia de Munduruku na literatura, em 1996. Eclodia aí o bem-sucedido ramo da literatura infanto-juvenil feita por autores nativos e que inclui trabalhos de autores como Lia Minapoty, Olívio Jekupé, Eliane Potiguara, Kaká Werá, entre outros. “Eu fui criando praticamente uma horda de escritores de livros para criança.”.
Nesse primeiro momento, Daniel não tinha experiência com as técnicas narrativas e precisou de ajuda de uma escritora mais experiente (Heloísa Prieto) para compor seus textos final. Sua literatura bebia da fonte farta e ancestral da oralidade. Em uma entrevista para o jornal mineiro O Tempo, Munduruku reflete: “Se pensarmos como leitura de mundo (que passa pela dança, pela música, pelo canto, pelo grafismo), diria que é muito anterior à concepção de literatura ocidental. Digo isso porque defendo que a escrita indígena é apenas mais uma manifestação da memória ancestral e que a verdadeira literatura é formada pelo conjunto de manifestações que são expressas pelo corpo. Esse conjunto holístico é que eu chamo de literatura indígena”.
Pioneiro da literatura indígena contemporânea, Daniel é um grande articulador, e se empolga com as eleições de 2020, quando não só ele vai se candidatar a prefeito de Lorena, mas também a escritora e geógrafa indígena Márcia Kambeba será candidata a vereadora pelo PSOL, entre outras pré-candidaturas de ativistas indígenas, que ele enumera. “Nós precisamos ocupar espaços. Tem um grupo bastante grande se prontificando a concorrer a uma vaga. Pode ser que a gente seja eleito e faça um movimento dos indígenas na política. Que estimule os mais novos a acreditar”. Seu engajamento partidário relaciona-se com “o golpe contra Dilma” e com os ataques de Bolsonaro aos povos indígenas. “Nos 13 anos do PT no poder cresceu muito o número de universidades, cresceu muito o número de negros na política, cresceu muito o número de indígenas nas universidades. A cultura africana e a cultura indígena estavam sendo mais valorizadas e vistas como arte. Essas mudanças incomodam porque são uma virada na pirâmide. E quando a pirâmide tende a virar, a minoria [mais rica] começa a se sentir incomodada e a manipular a mente das pessoas”.
Narrador da vida de pajés e caraíbas, e ex-aspirante a padre, Daniel se aproxima do fim da prosa versando sobre fé: “Escolhi ser professor porque acredito que o professor é aquele que professa alguma fé nas pessoas. Eu professo minha fé na humanidade. Isso não significa que eu seja otimista. A minha intenção não é mudar nada, é provocar. Provocar as pessoas a quererem mudar. Mas se elas não quiserem mudar, tudo bem, o problema é delas”.
4 heróis de filmes de aventura que fazem a cabeça de Daniel Munduruku
Harry Potter
Robin Hood
Percy Jackson
Katniss Everdeen (Jogos Vorazes)
Foto em destaque: Reprodução/ G1