Trabalhadores que garantiam bebidas aos frequentadores de um megafestival multimilionário de música recheado de artistas renomados foram resgatados do trabalho escravo. Eles eram submetidos a condições degradantes e foram contratados com promessas enganosas de um serviço com dignidade.
O relato acima poderia servir para os cinco que carregavam bebidas para abastecer a sede dos frequentadores do Lollapalooza e foram resgatados de condições análogas às de escravidão nesta semana. Mas cabe também para descrever a vida dos 93 resgatados que vendiam cerveja e refrigerante aos frequentadores do Rock in Rio em setembro de 2013.
Quase dez anos separam os dois casos, que não foram os únicos envolvendo grandes festivais de música com milhares de frequentadores que pagam ingressos de centenas ou milhares de reais.
E, ao contrário do que aconteceu com vinícolas como Aurora, Garibaldi e Salton, no caso dos 207 resgatados em Bento Gonçalves (RS), não houve grandes campanhas pregando o boicote ao Lollapalooza nas redes sociais.
Mesmo que, dias depois, auditores fiscais do trabalho tenham voltado ao local do show, o Autódromo de Interlagos, em São Paulo, e constatado que cerca de 800 empregados dos bares do festival estavam com seus direitos “gravemente violados”.
Cervejas, refrigerantes e batatas
No caso do Rock in Rio, de 2013, o Ministério do Trabalho e Emprego apontou a rede de fast food Bob’s como responsável pelos escravizados. Segundo a fiscalização, eles estavam alojados em locais sem as mínimas condições de dignidade e foram obrigados a contrair dívidas para pagar a credencial e poderem trabalhar.
Para preencher as vagas, o Bob’s utilizou a empresa To East, que, por sua vez, subcontratou a 3D Eventos. Na época, a rede negou à Repórter Brasil que o caso fosse de trabalho escravo, afirmou estar “à disposição das autoridades competentes para continuar prestando todos os esclarecimentos necessários” e prontificou-se a assinar um termo de ajustamento de conduta de forma solidária.
Após a caracterização do crime, a organização do Rock in Rio disse que “a contratação de funcionários é de responsabilidade, firmada em contrato, dos operadores de bares e lanchonetes” e que, “ao tomar ciência das acusações, o Rock in Rio entrou em contato imediatamente com a empresa, nesse caso o Bob´s, para que a mesma tomasse as devidas providências”.
Justificativa semelhante foi dada, dois anos depois, quando a fiscalização resgatou 17 pessoas de condições análogas às de escravo novamente no Rock in Rio. Na edição de 2015, foi constatada escravidão contemporânea na venda de batatas fritas por ambulantes da empresa Batata no Cone, dentro do festival.
Segundo o Ministério do Trabalho, as vítimas gastavam mais do que recebiam para atuar no local. Os ganhos diários eram superados por despesas com hospedagem, exames médicos, transporte, comida, e até com batatas que não eram vendidas ao final do dia e precisavam ser reembolsadas aos empregadores.
A organização do Rock in Rio informou, na época, que “não tem qualquer responsabilidade sobre a contratação de profissionais de outras empresas para atuarem na Cidade do Rock”. A nota ainda disse que “trabalha de acordo com a legislação brasileira e lamenta que este não seja o procedimento adotado por outras empresas”.
Terceirização da responsabilidade
No mais recente caso do Lollapalooza, cinco trabalhadores que atuavam na preparação do evento foram resgatados, na última terça (21), três dias antes de os shows começarem. Como revelou Gil Alessi, da Repórter Brasil, eles trabalhavam como carregadores de bebidas em jornadas de 12 horas diárias e estavam submetidos a condições degradantes.
“Depois de levar engradados e caixas pra lá e pra cá, a gente ainda era obrigado pela chefia a ficar na tenda de depósito, dormindo em cima de papelão e dos paletes, para vigiar a carga”, afirmou um dos resgatados. Os trabalhadores relataram que eram ameaçados com demissão caso tentassem deixar o local após o expediente.
Rafael Neiva, auditor fiscal que participou da operação, feita pela Superintendência Regional do Trabalho no Estado de São Paulo, diz que eles “não recebiam papel higiênico, colchão, equipamento de proteção, nada”.
Os cinco resgatados prestavam serviços para a empresa Yellow Stripe, uma terceirizada contratada pela Time 4 Fun, conhecida como T4F, dona do Lollapalooza no Brasil.
Em comunicado, o festival informou que “é terminantemente proibido pela T4F” que trabalhadores durmam no local, fato que fez com que fosse encerrada “imediatamente a relação jurídica estabelecida com a Yellow Stripe”. Disse também que considera este um fato isolado, o repudia veementemente e seguirá com uma postura forte diante de qualquer descumprimento de regras pelas empresas terceirizadas”.
Já a Yellow Stripe informou que “cumpriu as determinações do Ministério do Trabalho, sendo que os empregados em questão foram devidamente contratados e remunerados”.
Apesar de a organizadora do evento afirmar que isso foi um “fato isolado”, trabalhadores já relatavam condições inaceitáveis. O padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, denunciou que pessoas em situação de rua receberam R$ 50 por dia por jornadas de 12 horas a fim de carregar equipamentos para montar o Lollapalooza em abril de 2019.
Reportagem da Folha de S.Paulo aponta que, em março de 2018, a Pastoral já pedia ao Ministério Público do Trabalho que investigasse empresas de carregamento a serviço de outra edição do festival pela mesma prática.
“Apesar de hoje ser possível a terceirização de atividade fim, que não trouxe a prometida geração de empregos, mas sim precarização e trabalho escravo, a lei prevê a responsabilidade direta das contratantes pelas condições de saúde e segurança dos terceirizados”, afirma Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho e Emprego.
“E isso está sendo aplicado pela Inspeção do Trabalho nos casos de trabalho escravo mais recentes”, afirma.
O fato é que por não sofrer a mesma pressão social e jurídica que as vinícolas do Rio Grande do Sul, os organizadores dos festivais sentem-se mais à vontade para não se responsabilizarem pelas condições em suas instalações. Ou seja, as atrações são renovadas a cada edição, mas a situação dos direitos humanos segue a mesma.
Trabalho escravo hoje no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT