11 de fevereiro é marcado desde o ano de 2015 como o dia das Mulheres e Meninas na Ciência. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) como forma de contribuir para maior visibilidade feminina na pesquisa. O objetivo da comemoração é celebrar as conquistas das mulheres na ciência, inspirar as gerações futuras a seguir carreira na área, bem como estimular uma rede ativa de homens e mulheres para superar as barreiras à igualdade de gênero na ciência.
Para celebrar a data, a Secretaria de Comunicação (Secom) da FURG conversou com duas mulheres pesquisadoras sobre os avanços realizados nos últimos anos a respeito da participação feminina na ciência, enfrentamento ao negacionismo científico e as projeções que fazem para o futuro. Conheça abaixo as nossas entrevistadas.
Janice Appel é Doutora em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora CAPES DS com doutorado sanduíche pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior no Centro de Investigación Arte y Entorno, da Universitat Politecnica de Valencia (UPV). Mestre em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Bacharel em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora, docente e artista que atua em plataforma multidisciplinar e transdisciplinar como educadora, pesquisadora em Artes Visuais. Docente Efetiva do Magistério Superior no Curso de Artes Visuais, do Instituto de Letras e Artes (ILA) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Líder do Grupo de Pesquisa Arte Pública, Entorno e Novos Gêneros e coordenadora do projeto de pesquisa Arte pública e a formação de poéticas da paisagem nos biomas planície costeira, pampa, mata atlântica e seu entorno: monumentos, parques, praças, jardins, feiras, festas populares e ações artísticas. Ganhadora do fomento CAPES PAEP Edital 25/19 para o I Seminário Internacional de Pesquisa da Paisagem Costeira na Arte Contemporânea: ética, ecologia e entorno.
Raquel Sparemberger é Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela UFPR. Pós-doutoramento em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora do Programa de Mestrado em Direito da FURG. Professora dos cursos de graduação e do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, Direito Ambiental e Direitos Humanos, América Latina e questões decoloniais. Professora pesquisadora do CNPq e FAPERGS. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Tutelas à efetivação dos direitos indisponíveis, Linha Tutelas à efetivação de Direitos Públicos Incondicionados. Grupo de Pesquisa: Sociedade da informação e Fake Democracy: os riscos à liberdade de expressão e à democracia constitucional (FMP/RS). Responsável pelo Grupo de Estudos da FURG sobre Direito constitucional, violência e crise migratória.
Acompanhe a seguir a entrevista com as cientistas Janice Appel e Raquel Sparemberger.
11 de fevereiro de 2015 foi instituído pelo Organização das Nações Unidas como o dia das Meninas e Mulheres na Ciência. De lá para cá, o que vocês apontam como progresso no sentido da representatividade e na equidade de gênero dentro do fazer científico?
Janice: Aponto como progresso o aumento da representatividade feminina dentro do fazer científico, ainda que sigamos na luta contra a invisibilidade, apesar da alta produção qualificada que trazemos ao campo do conhecimento, bem como da multiplicação dos nossos saberes. Um dos exemplos reporta-se ao fato de que em 2015 pude realizar um doutorado sanduíche na Espanha, junto à Universidade de Valência, assim como muitas de minhas colegas também o puderam fazer, após uma geração particularmente centrada na comunidade masculina como detentora da maioria das vagas que recebiam estímulo à produção científica. Pude perceber, ao estar em Valência, a presença de outras cientistas brasileiras do outro lado do Oceano Atlântico, as quais contribuíram para dar destaque a tantas áreas do conhecimento científico ainda centradas em um tipo específico de gênero. Um dos fatores que aponto como positivos para estas transformações também estaria atribuído ao fato de que mulheres também passaram a ocupar cargos de forte representatividade, tais como presidências e governanças de países, estados e nações. Um progresso tem sido, desde então, o aumento de referências bibliográficas que apontam para publicações de mulheres, as quais descentralizam do gênero masculino como único caminho para o referencial. Aponto, contudo, que ainda temos um longo caminho a percorrer e que necessitamos do apoio da comunidade científica para que possamos nos expressar e ganhar mais visibilidade em nossas pesquisas e conquistas.
Raquel: Acredito que sim, temos conquistado muito diante de uma cultura extremamente conservadora e machista que permanece enraizada no nosso cotidiano. Mesmo que muitos ainda desconheçam, a lista de mulheres que conseguiram driblar o machismo e gerar grandes contribuições para o desenvolvimento das ciências é grande. Mesmo diante de tais avanços, há muito ainda a ser conquistado. Segundo previsões da Unesco, as mulheres continuarão sendo minoria no ramo científico nos próximos anos. Em 2030, elas devem representar apenas 30% do total de pesquisadores em atividade no mundo. Segundo dados divulgados no último relatório da Unesco, agência da Organização das Nações Unidas (ONU), as mulheres representam hoje apenas 28% dos pesquisadores no mundo e a diferença aumenta ainda mais em funções (cargos) de gestão tanto no âmbito público como no privado. Verifica-se, assim, que essa porcentagem se justifica por diversos fatores, como o difícil acesso a investimentos e redes de estudo específica para mulheres e pensadas para mulheres. Para as Nações Unidas, ciência e igualdade de gêneros são vitais para alcançar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Atualmente convivemos com o negacionismo científico, diante deste cenário, como vocês enquanto mulheres e cientistas enfrentam essa realidade?
Janice: Atuar contra uma realidade negada tem sido uma luta constante para mulheres cientistas, o que é um constante regresso, para o qual nos conduzem toda e qualquer orientação negacionista. Em outras palavras, quero dizer que o negacionismo tem sido uma prática constante de invisibilizar as conquistas científicas, evolutivas, de transformação e construção do conhecimento humano. A mulher tem seus direitos constantemente negados e estamos em constante luta para execução de nossas garantias, as quais voltam a ser anuladas. Pensar que a terra é plana, ou que vacinas não funcionam, bem como liberar altas taxas de venenos para o cultivo do alimento que comemos, ultrapassa os limites do negacionismo e avança para o genocídio em massa de uma grande parte da população que tem o direito à vida. No campo da arte, no qual desenvolvo minhas pesquisas, percebo que a maioria absoluta sempre destaca e reconhece prioritariamente a produção masculina, quando na verdade temos inúmeras artistas protagonistas de grandes rupturas e transformações no campo da arte.
Raquel: O Brasil sempre cultivou uma visão revisionista e misógina, que ataca a memória e ataca as mulheres, é um problema cultural, mas também moral. O negacionismo está nesse caso vinculado ao triste e lamentável machismo cultural e estrutural que faz parte da sociedade brasileira, enrustido na piadinha de todos os dias, até a violência declarada. O negacionismo, é, portanto, uma atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência (das mulheres com igualdade de condições e direitos), a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam. No caso, para nós mulheres, ele vem revestido de preconceito, expresso por opiniões e atitudes, que se opõem à igualdade de direitos entre os gêneros, favorecendo o gênero masculino em detrimento ao feminino. O pensamento machista é cultural e inerente aos diversos aspectos de uma sociedade, como a economia, a política, a religião, a família, a mídia, as artes, etc. Enfrentar tal realidade (resistir, combater) é parte do meu cotidiano, dos meus discursos, do meu agir. É minha pauta de vida, há mais de duas décadas de atuação como pesquisadora e docente pelo menos.
A data faz alusão também às meninas na ciência, vocês quando estudantes tinham alguma inspiração feminina nos estudos? E hoje quais são as referências de vocês?
Janice: Sou da geração de 1970, portanto tenho em minhas referências de estudante poucos estímulos na escola e na universidade para o destaque de exemplos femininos que me levassem à inspiração. Naquele tempo, minha maior inspiração era minha mãe, Maria de Lourdes, na época citopatologista, a qual me estimulava a estudar como grande lugar de força da autonomia feminina. Chegar aos exemplos femininos, para além do campo doméstico, era sempre uma grande descoberta e revelação. No campo da arte tenho a memória de ser a partir da música e da literatura os exemplos mais expressivos que tínhamos na época, tais como Rita Lee e Elis Regina, sempre marcados por situações de resistência e luta exercidos através da linguagem artística. Tenho compensado esta falta de estímulos atualmente, a partir da docência e da produção científica que exerço. Constantemente palestro e dou aulas e é neste momento que atuo para relembrar, destacar e visibilizar nomes fundamentais do campo da ciência e das artes, sempre invisibilizados pelas narrativas hegemônicas e patriarcais dominantes. Na área dos estudos da arte pública de novo gênero tenho destacado os nomes de algumas mulheres, tais como Nina Felshin, Lucy Lippard, Paloma Blanco, Martha Rosler, Rosalin Kraus, Clair Bishop, Miwon Kwon, Judy Chicago, Suzanne Lacy, Judith Baca e Judith Butler.
Raquel: Quando estudante, desde sempre admirei mulheres, primeiro minha mãe Teresinha Lopes, professora que sempre me motivou a fazer ciência. No Ensino Fundamental admirava minha professora da primeira série Eulália Cadoná, depois no Ensino Médio a professora Alcione Pilger, na universidade foram muitas, mas duas foram importantes na minha vida naquele período, Claudia Rosane Roesler, hoje professora da UNB-DF e Eloisa Argerich, (eu queria ministrar aulas como ela), lia tudo da professora Vera Regina Pereira de Andrade, Ivone Lixa, Maria Jose Fariñas Dulce, Hannah Arendt, dentre outras. Hoje como professora universitária as minhas alunas são a minha grande inspiração, mas também grandes cientistas da minha área de atuação, como: Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Lélia González, Catherine Walsh, Chantal Mouffe, Nancy Fraser, Débora Diniz e Rita Segato, dentre outras autoras indispensáveis para pensar, refletir, debater e compreender o Brasil e o mundo, nos mais variados temas.
Apesar dos muitos desafios, de que maneira vocês projetam o futuro para a ciência feita no Brasil e pelas mulheres?
Janice: Projeto ter mais estímulo, incentivo e visibilidade, não somente para a pesquisa e para a ciência no Brasil, mas também para a produção artística e do sensível em um campo expandido e em diálogo com outras nações, bem como para o resgate de sabedorias ancestrais e milenares, até então negadas pelo próprio campo da ciência, tais como os processos místicos, míticos e de expressão. De todas as formas, será na garantia dos direitos humanos um dos alicerces fundamentais para a manutenção de nossas vidas e expressão de subjetividades femininas.
Raquel: Apesar de avanços ocorridos no século 20 em direção à igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres, o progresso tem sido lento e as disparidades persistem em todo o mundo. De acordo com o CNPq, as mulheres constituem 43,7% dos pesquisadores científicos no Brasil. Em nível mundial, esse valor desce para 30%, segundo a ONU. No CNPq, a curva é otimista e aponta que o número de mulheres pesquisadoras vai superar o de pesquisadores do gênero masculino dentro de uma década. Porém, o mesmo não acontece em cargos de liderança dentro da pesquisa científica.
É preciso: Resistir; Promover a representatividade e a diversidade feminina. Além de reconhecer o problema e trabalhar em políticas e ações que promovam a equidade de gênero, é importante que todos nós encorajemos meninas e jovens a seguir a carreira que desejarem. Esse é um desafio maior para cursos da área de Exatas, onde ainda somos poucas. Afinal, não há trabalho que não possa ser feito, e bem-feito, por uma mulher.
É preciso também identificar e combater o preconceito contra mulheres enraizado cultural e institucionalmente –– algo que não é exclusividade do Brasil. Reconhecer os papéis sociais de gênero e a falta de regulamentação para situações específicas, como a licença-maternidade. É preciso muito mais, mas estamos no caminho!