Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior: um médico negro no Império (1808-1884)

Para iniciar o texto, gostaria de apresentar um retrato do Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior, médico e professor catedrático da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, entre os anos de 1833 e 1857, com a certeza de que a trajetória deste homem negro pode contribuir, na condição de referência e de representatividade, na luta antirracista que enfrentamos no Brasil, e também no mundo. De fato, o século XIX representa um momento complexo quando analisamos microscopicamente as estruturas, redes e estratégias que envolviam os ditos homens “de cor”, livres e libertos, que se agregavam na sociedade brasileira oitocentista enquanto intelectuais, jornalistas, escritores e médicos.

Retrato de José Mauricio Nunes Garcia Junior. Pintado por. Local, Data. Fonte: acervo pessoal do autor.

A história de vida do Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior e de seus contemporâneos médicos negros, infelizmente, ainda não figura nas salas de aula da Educação Básica. Porém, é indiscutível a importância de que a educação de crianças e jovens parta de uma perspectiva que abranja histórias de sujeitos negros do Oitocentos. A partir de outras leituras do período escravocrata, considerando os “espaços de liberdade”, seria possível, por exemplo, valorizar a importância da representatividade de negros e negras.

Nesse sentido, seriam avultados nomes como o do Dr. Joaquim Candido Soares de Meireles, homem “de cor” formado pela Faculdade de Medicina de Paris em 1827, que foi o primeiro presidente da Academia Imperial de Medicina, atual Academia Brasileira de Medicina. Ou ainda do Dr. Francisco Júlio Xavier, também formado pela Faculdade de Paris, em 1833, e professor catedrático da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro na época em que o amigo Dr. Nunes Garcia Junior lá atuava. Pensar nesses nomes e nessas redes de intelectuais médicos na segunda metade do século XIX, por meio das narrativas autobiográficas do Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior, coloca-nos frente a diversas questões relativas à necessidade de referenciar essa nova historiografia que se dedica a alcançar e evidenciar tais histórias, como sugere este texto.

Em princípios de 1860, o então secretário do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), o escritor Joaquim Manoel de Macedo, amigo de longa data do Dr. Nunes Garcia Junior, solicitou ao médico uma autobiografia que pudesse ser arquivada na sede do IHGB e que focasse em suas histórias e vivências, posto que se tornava o novo sócio correspondente da entidade. De fato, a iniciativa do amigo refletia os objetivos do novo Instituto, que visava constituir uma história da nação, criando, para isso, um passado e a perspectiva de um futuro após a Independência de 1822.

Assim, os apontamentos autobiográficos do médico foram iniciados no dia 22 de setembro de 1860, data importante por ser o trigésimo aniversário de morte do pai, o afamado padre e compositor José Mauricio Nunes Garcia. Nas narrativas, o Dr. Nunes Garcia Junior buscou pôr em relevo diversos fatos de sua história de vida: as origens mineiras e cariocas, tão próximas do cativeiro; a relação com o pai e as estratégias dele para inserir os filhos em espaços da intelectualidade do Império; os tempos de estudante na Academia Médico-Cirúrgica como discípulo do médico Dr. José Maria Cambucy do Valle; as aulas de pintura com o mestre Jean-Baptiste Debret, na Academia Imperial de Belas Artes; entre outras vivências. Entretanto, um tema recorrente no documento é a constante busca por respeito, direitos e cidadania do autor, sobretudo em face dos preconceitos raciais sofridos como médico e professor negro da Faculdade de Medicina da Corte.

A difícil relação com a diretoria da instituição, as trapaças nos concursos de que ele participou para professor substituto e catedrático e os 25 anos como professor da Faculdade são temas revisitados pelo médico. De fato, os embates e as humilhações sofridas e experimentadas com seu oponente, Dr. José Martins da Cruz Jobim, diretor por mais de vinte anos, fazem-se presentes em sua escrita e revelam, por um lado, a denúncia. O Dr. Nunes Garcia Junior relatou que o diretor Jobim o apontava “como o negro mais desavergonhada da Escola, isto em ausência, porque ele teve certeza que a um tal insulto em face eu quebrava-lhe as ventas…”. O autor afirmou que, por diversas vezes, recorreu aos jornais ou acionou juridicamente a Escola de Medicina da Corte por conta dos referidos preconceitos raciais.

A autobiografia do médico foi finalizada em 1880, ou seja, vinte anos após o início do trabalho. No próprio texto, o médico informa que seu material foi recusado pelo IHGB: “Há vinte anos passados, que supondo eu estarem estes Apontamentos na ata do Instituto Histórico – seguindo circular recebida do sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo (…) eu, por certo, jamais teria podido esperar que hoje me vissem elas a mão e como se acham!”. Ainda não temos elementos suficientes para explicar a recusa em resguardar esse importante material: teria sido por questões relativas à sua origem clerical, preconceito racial ou pelo atraso do autor em duas décadas? Todavia, a recusa não foi impedimento para que o Dr. Nunes Garcia Junior finalizasse a obra e pudesse registrar para posteridade suas vivências naquele contexto do Brasil Império.

O Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior experienciou diferentes períodos da história brasileira. Nascido em 1808, no Rio de Janeiro, foi preparado pelo pai para as primeiras letras. Aos 16 anos, por conta dos contatos paternos, foi encaminhado para Academia Médico-Cirúrgica. Formou-se em 1830 com médico cirurgião; já em 1833, foi aprovado num concurso para professor substituto da Faculdade de Medicina da Corte e, em 1839, aprovado para professor catedrático de Anatomia da instituição, cargo que exerceu até 1857. Ainda atuou como membro das Academias Imperial de Medicina e de Belas Artes. O médico tinha uma clínica particular na Rua da Carioca, onde, às quartas-feiras, atendia mulheres grávidas em vulnerabilidade financeira, chegando a inaugurar uma pequena maternidade para pobres e escravizadas, onde atuou como parteiro até alguns anos antes de sua morte.

Foi na manhã de 18 de outubro de 1884, dia dedicado ao médico, que morreu o Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior, aos 77 anos, quatro anos após a finalização da autobiografia. Faleceu em um sobrado na Rua Luiz de Camões, nas proximidades da Academia Imperial de Belas Artes e do Conservatório Imperial de Música. Os momentos finais foram acompanhados de perto por amigos de longa data, como os inventariantes médicos, doutor Ignacio Goulart e outros. Não devem ter sido fáceis os momentos finais vividos por esse homem, divorciado, com os filhos mortos, sofrendo de fotofobia e tomado por artrites e artroses por todo o corpo. De fato, os inventariantes tiveram pouco trabalho no post mortem, pois o próprio Dr. Nunes Garcia Junior já havia encaminhado boa parte das questões burocráticas, tais quais a compra da sepultura no cemitério São João Batista, o destino do patrimônio formado por mais de mil réis e a definição de seus beneficiados. Deste modo, os documentos pessoais, as imagens e autobiografia, ou seja, o arquivo pessoal deste médico tornou-se parte de um grande imbróglio jurídico que perdurou por mais de vinte anos após sua morte e só foi finalizado por conta de um “auto de sequestro” e graças aos esforços de intelectuais da época que conseguiram preservar boa parte desse acervo.

Após a morte do Dr. Nunes Garcia, o Visconde de Taunay, um dos principais biógrafos do padre José Mauricio Nunes Garcia e amigo pessoal do médico – talvez por informações dele próprio –, solicitou, por meio do Jornal do Comércio, que o inventariante, doutor Ignacio Goulart, então responsável pelo acervo do Dr. Nunes Garcia, destinasse o quadro a óleo do padre José Mauricio, pintado pelo filho, à então Academia Imperial de Música. A iniciativa, que foi acolhida pelo inventariante, não designou um fim para os documentos do arquivo pessoal. Somente em 1911 é que despontaram notícias da autobiografia do médico, quando, no Jornal do Comércio, o médico e historiador Dr. Vieira Fazenda informou que boa parte do acervo do Dr. Nunes Garcia Junior, inclusive sua autobiografia, havia sido adquirida pelo bibliófilo José Carlos Rodrigues e doada integralmente à Biblioteca Nacional.

Vale destacar que, naquele período e durante boa parte da Primeira República, ocorreram ações para mitificar a imagem do padre José Mauricio Nunes Garcia como o maior compositor das Américas. O padre negro passou a ser forjado, naquele contexto – e até os dias de hoje –, como um religioso, mulato e funcionário da Corte Portuguesa. Essa imagem destoava da moralidade católica na medida em que o padre foi pai de cinco filhos em uma relação concubinária com Severiana Rosa de Castro, que, além do médico, deu à luz o jornalista Antonio José Nunes Garcia, homem “de cor” e aclamado publicamente por abolicionistas como José do Patrocínio. O casal também gerou o organista Apolinário José Nunes Garcia e as moças Josefina e Panfilia.

Durante a primeira metade do século passado, não houve qualquer menção à autobiografia do médico depositada na Biblioteca Nacional por parte da intelectualidade brasileira. Somente em 1950 é que o musicólogo teuto-uruguaio Francisco Curt Lang, iniciando suas pesquisas nos acervos musicais de Minas Gerais e de passagem pelo Rio de Janeiro, localizou e publicizou trechos da autobiografia do médico. Esse trabalho de Curt Lang, ainda que buscasse valorizar exclusivamente aspectos da história de vida do padre José Mauricio e o período musical brasileiro, foi pioneiro na medida em que destacou a paternidade do religioso.

Podemos pensar nessa autobiografia enquanto um documento/monumento, a partir da perspectiva de Jacques Le Goff, ou seja, um testemunho de um período histórico brasileiro (o escravocrata oitocentista) pela ótica de um homem negro, livre e intelectual de sua época. Porém, essa autobiografia, ainda hoje, permanece em silêncio. Pouquíssimos investimentos e pesquisas históricas deram-se sobre a obra e a própria história de vida do Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior. Somente em 1997 é que sua autobiografia foi novamente revisitada e valorizada por conta do trabalho da musicóloga Cleofe Person de Mattos, biógrafa do padre José Mauricio Nunes Garcia, que divulgou outros trechos do manuscrito.

Finalizo o texto afirmando que a autobiografia do Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior não pode mais ser desconhecida do grande público – de pesquisadores, estudantes e da sociedade em geral. Urge que este e outros documentos centrados em sujeitos negros (homens e mulheres) sejam reconhecidos enquanto fontes históricas e objetos de nossa atenção historiográfica. A autobiografia e o arquivo pessoal desse médico negro do Império brasileiro sempre estiveram cercados por apagamentos manipuláveis, por uma necromemória. Entretanto, a autobiografia do Dr. Nunes Garcia Junior ainda pode funcionar como escrita de resistência e uma janela de vivências para os movimentos negros e educacionais no atual contexto, uma vez que revela as subjetividades de um sujeito, suas estratégias, disputas e embates, suas redes e as apostas como um homem negro, livre e professor catedrático do século XIX.

Assista ao vídeo do historiador Vandelir Camilo no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08H19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas).

Ensino Médio: EM13CHS401 (Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e rurais) e contextos); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).

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