Antônio José Nunes Garcia: um jornalista negro nos tempos do Império (1813-1894)

Através de uma denúncia feita pelo abolicionista José do Patrocínio, no jornal Gazeta de Notícias de 1884, foi possível dimensionar a figura de Antônio José Nunes Garcia, importante jornalista e abolicionista negro. A nota dizia o seguinte: “Entretanto, agora, que falamos do senhor [Antônio José] Nunes Garcia que tão injustiçado tem sido pela nova geração, não podemos deixar de censurar o mau procedimento do Instituto Histórico e da Associação de Homens de Letras, esquecendo o seu venerando nome, entre a lista honrosa de seus digníssimos sócios”. Aqui, Patrocínio chamava atenção das instituições literárias à época pelo não reconhecimento da figura de Antônio José Nunes Garcia, então uma referência àquela geração do movimento abolicionista.

Essa notícia nos apresenta o recohnecimento e o respeito de uma nova geraçao de abolicionistas, já que Antônio José contava com seus 70 anos de idade à época e José do Patrocínio estava com 30 anos, quarenta a menos do que o ilustre jornalista negro. A importância de Antônio José para os movimentos em prol da abolição é tamanha, posto que ele denunciava o sistema escravista brasileiro em jornais de sua propriedade desde 1849, como veremos ao longo do texto.

Mas quem foi Antônio José Nunes Garcia?  Nascido em 1813, na cidade do Rio de Janeiro, então sede da corte do Império português, este importante personagem negro foi o último filho do padre José Mauricio Nunes Garcia e de Severiana Rosa de Castro. Antônio foi batizado pelo pai na Igreja de São José em 27 de março daquele mesmo ano, tendo por padrinhos Antônio Bernardino dos Santos e Vitoria Maria da Cruz, sua avó materna.

Retrato de Antônio José Nunes Garcia. Litografia Romance Mysterios do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1856. Fonte: acervo pessoal do autor.

Hoje é possível afirmarmos que Antônio José Nunes Garcia esteve a par de uma rede de homens “de cor” ao longo de sua vida, quer enquanto professor primário, quer como monarquista e jornalista. Entretanto, observa-se que os pesquisadores, de modo geral, acabaram se voltando exclusivamente para análises e problematizações acerca da figura do seu pai, o padre José Mauricio Nunes Garcia, que é forjado como o maior compositor brasileiro, e das Américas. Isso contribui em um embaraçoso esquecimento relativo aos filhos desse sacerdote, pairando, ainda hoje, um total desconhecimento da trajetória de Antônio José nos diferentes campos de sua atuação ao longo da vida. Ou seja, esse sujeito foi – e ainda é – atravessado por um significativo esquecimento quanto a sua existência, que pretendemos recuperar aqui.

Os poucos dados sobre a infância de Antônio José Nunes Garcia que encontramos constam na autobiografia escrita por seu irmão mais velho, o Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior, médico e professor da Faculdade de Medicina da Corte. Os demais dados foram retirados de jornais de sua propriedade e romances de sua autoria. É plausível que Antônio José tenha recebido os mesmos ensinamentos do pai, padre José Mauricio Nunes Garcia, assim como seus irmãos mais velhos: Apolinario José Nunes Garcia (1807-?), dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior (1808-1884); Josefina Rosa de Castro (1810-1891) e Panfilia Rosa de Castro (1811-ca.1850). O padre investiu na formação dos filhos como forma de subsistência e possibilidade da cidadania de pessoas “de cor” naquele contexto escravocrata.

Ainda são parcas as informações acerca da atuação de Antônio José na mocidade. Mas sabemos que viveu em companhia do pai e dos demais irmãos até 1830, aos 17 anos. Isso porque aos 18 dias de abril daquele ano, seu pai veio a óbito. Na autobiografia do irmão, Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior, é informado que suas   irmãs – Josefina e Panfília – foram encaminhadas aos cuidados de sua tia materna, Felizarda Moreira de Castro, por viverem em “estado de loucura”, sob o pagamento de quatro réis mensais. É plausível que Antônio José tenha acompanhado as irmãs nessa nova morada, pois ele se casou, em 1836, com sua prima Cantilde Alves de Araújo, filha dessa sua tia Felizarda.

Já em 1837, Antônio José tornou-se guarda alfandegário, profissão que exerceu por toda a vida. No ano seguinte, matriculou-se como aluno da Escola Pública de Taquigrafia, chegando a traduzir um método taquigráfico para o português. E naquele mesmo ano, após concurso, finalmente assumiu a cadeira de professor público de Instrução Primária na Vila Inhomirim, Freguesia de Magé, interior da província do Rio de Janeiro. Foi em fins de 1848, após dez anos atuando como professor, que Antônio José requereu ser transferido para a Freguesia de Cantagalo, na região serrana do Rio de Janeiro. Entretanto, no ano seguinte, foi informado de que seu pedido de remoção fora negado. Dessa forma, pediu exoneração do cargo de professor em 25 de abril de 1849.

A partir de 1849, Antônio José Nunes Garcia inaugurou diversos jornais no Rio de Janeiro, além de publicar novelas, romances e poemas autorais em folhetins cariocas. Além disso, foi crítico de arte e publicou críticas relacionadas a espetáculos teatrais, óperas e concertos sobre a vida artística da Corte. É importante frisar que a causa anti-escravocrata e racial já era pautada nos jornais em que ele era redator e proprietário desde, ao menos, o início da década de 1850. Destaca-se ainda que ele vai se reconhecer como jornalista na primeira página do seu folhetim de estréia, O Clarim, Ecos da União, de 1849, demarcando assim toda uma trajetória política como intelectual negro a partir daquele momento.

Os campos literário e jornalístico foram mais produtivos para Antônio José ainda na década de 1850. Mas podemos inferir que o campo político também foi outra esfera importante. Naquele ano, ele e a esposa se mudaram para o bairro da Glória, no Rio de Janeiro. E manteve constantes ligações com a vida política na capital do Império, como constatado a partir do Jornal do Comercio, de 1856, no qual encontra-se descrito como um liberal e candidato a eleitor. Esta informação é relevante para entender a posição social de Antônio José, posto que o sistema eleitoral, desde a Constituição de 1824, definia que os eleitores constituintes deveriam ter idade mínima de 25 anos e renda anual de 100 mil réis para votarem. Logo, Antônio José poderia acessar direitos políticos (como votar e ser eleito), apesar das restrições e interdições existentes naquela sociedade do Oitocentos. Tanto que em 1872 ele foi candidato a vereador ao lado de nomes como Muniz Barreto e Sabino Eloy Pessoa, entre outros.

Como dito anteriormente, as denúncias ao escravismo eram uma preocupação de Antônio José Nunes Garcia no âmbito de sua atuação político-intelectual no jornalismo. Ela vai atravessar muitas de suas produções jornalísticas e romances desse período. Por exemplo, no seu folhetim O Guasca na Corte – periódico jocoso, político e imparcial, de 1851, no qual ele denunciou todo o atraso relativo ao sistema escravocrata ao afirmar que: “primeiramente, eu estou persuadido que a escravaria, que desgraçadamente se introduziu entre nós, é a causa primordial da nossa péssima educação; e em verdade quais são os nossos principais mestres? São sem dúvida a africana que nos amamentou, que nos pensou e nos  subministrou  as  primeiras  noções…”. Desmontar as estruturas do escravismo no Brasil era uma das agendas políticas de Antônio José.

Já em 1857, ele inaugurou o jornal O Brasileiro – folha livre e independente, de vida bastante efêmera, uma vez que encerrou suas atividades no ano seguinte. Neste folhetim, Antônio José tematizava sobre os costumes da sociedade brasileira da época, apresentando duras críticas ao sistema escravocrata, novamente, e destacando a seus leitores os sentidos da liberdade humana. Também apresentava denúncias de maus tratos a escravizados como, por exemplo, o espancamento de um escravo na Praia dos Mineiros ou a fuga de um proprietário de escravos para o bairro de Santa Teresa após matar seu escravizado. Se O Brasileiro foi um folhetim fundamental para Antônio José apresentar suas críticas profundas à instituição escravocrata e defender ao mesmo tempo a causa nacionalista/monarquista, foi também um espaço para ele sofrer o preconceito racial por conta de suas ideias, reflexões e proposições anti-escravistas, sem sombra de dúvidas.

Alinhado a essas e outras questões, Antônio José publicou em 1879 a revista O Censor Fluminense, uma pequena edição de quinze páginas. De caráter nacionalista, a revista exaltava a natureza e a mistura das raças no Brasil, ao mesmo tempo que idealizava o indígena, tão em voga nos discursos literários de então. Além disso, publicou diversos poemas ao Imperador Dom Pedro II, à sua família e à causa monárquica. No mais, nesta publicação, ele pormenorizou as condições do cidadão brasileiro frente a questões econômicas, históricas e de trabalho em fins do século XIX em relação (e comparação) aos portugueses residentes no país.

Já na década de 1880, a despeito de todos os questionamentos e denuncismos que o movimento abolicionista impunha à sociedade e ao sistema monárquico brasileiro, Antônio José Nunes Garcia, homem liberal, manteve-se firme em seu apoio à família imperial nesse período em que liberais e conservadores alternavam-se no poder, até a queda da Monarquia. Por outro lado, ele mantinha uma postura crítica ao sistema escravista e ao debate racial de então, o que, certamente, ocasionou o reconhecimento de abolicionistas republicanos como José do Patrocínio e Lopes Trovão.

E em 1889, em virtude da abolição da escravidão, Antônio José fez reimprimir O Censor Fluminense. Para tanto, argumentou que “tendo há dez anos publicado esse folheto e achando-se hoje a Pátria Livre dos horrores da Escravidão, julgando fazer alguns serviços à nossa Pátria o fazemos reimprimir o argumentado”. Essa segunda edição, lançada após os acontecimentos relativos à abolição, foi mais completa que a primeira.

Após a queda da Monarquia em 1889, que impôs o estabelecimento da República no Brasil, os movimentos negros mantiveram suas reivindicações e resistências, ainda que frente à perseguição oficial do Estado. Antônio José Nunes Garcia, como outros abolicionistas, deteve a capacidade de circular entre os abolicionistas monarquistas e os abolicionistas republicanos. Fato é que ele participou da primeira eleição para o Senado Federal em chapa intitulada “Homens de Cor” e apoiada pelo “Club dos Jacobinos Pretos”, sendo encabeçada por Domingos Gomes dos Santos – conhecido como “o radical” – e Galdinho de Carvalho, como consta em notícia do Jornal Gazeta da Tarde.

Ainda que não tenha obtido êxito nas eleições de 1890, a formação dessa chapa é um indicativo da representatividade e importância política adquirida pelos abolicionistas republicanos naquele contexto inicial da República brasileira. Demonstra também o reconhecimento e a capacidade de circulação de Antônio José, um monarquista em seus 77 anos, entre Domingos Gomes dos Santos, Teodoro Sampaio e Eduardo Prado, sendo que estes também circulavam, no mesmo período, entre monarquistas e republicanos. Ou seja, havia toda uma rede de articulação política a qual Antônio José estava inserido naquele cenário de estabelecimento da República no Brasil, apesar de sua posição como monarquista.

Antônio José Nunes Garcia faleceu em 22 de setembro de 1894, no hospital da Gamboa, região central do Rio de Janeiro. Vítima de artéria esclerose, ele veio a óbito aos 81 anos de idade, viúvo e sem deixar herdeiros. Partiu, ao que parece, solitário, esquecido e desacompanhado de amigos e familiares. O filho caçula de José Maurício Nunes Garcia e Severiana Rosa de Castro foi sepultado no cemitério de São Francisco Xavier. Consta em seu registro de óbito como filiação desconhecida e sem informações se deixava testamento.

Apesar de uma vida pública tão atuante ao longo do século XIX, como enfatizado ao longo do texto, não há menção sobre suas exéquias em nenhum jornal da cidade do Rio de Janeiro. Esse fato dificultou, inclusive, para que outros pesquisadores localizassem os desfechos finais da trajetória de Antônio José Nunes Garcia, fazendo com que esses breves sinais e vestígios de memória tornem-se, ainda hoje, testemunhos de um sujeito negro que viveu para a causa abolicionista e jornalística do Oitocentos brasileiro. Para finalizar, gostariamos de evidenciar a importancia de pesquisas que destaquem a trajetoria biográfica de intelectuais negros e negras, como a do nosso ilustre jornalista e abolicionista aqui tratado, enquanto uma das estratégias de combate a apagamentos históricos e silenciamentos de memória. Ou seja, é visibilizar esses indivíduos e suas múltiplas vivências para problematizar e desnaturalizar um conjunto crônico de necromemórias ligadas às histórias de vida do povo negro desse país.

Assista ao vídeo do historiador Vandelir Camilo no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08H19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas).

Ensino Médio: EM13CHS401 (Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e rurais) e contextos); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).


Vandelir Camilo

Doutorando em Memória Social – PPGMS/UNIRIO. Mestre em História, Política e Bens Culturais – CPDOC/FGV. Cientista Social, Historiador e Músico.

E-mail: [email protected]

Instagram: @vandelircamilo


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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