Eduardo Pereira da Silva: Breve nota sobre o direito de defesa

Há pouco mais de sessenta anos, a obra “O sol é para todos” (“To Kill a Mockingbird”), de Harper Lee, era lançada. O romance foi premiado com o Pulitzer e logo foi adaptado para o cinema, dando origem ao filme homônimo que recebeu dois prêmios Oscar (melhor roteiro adaptado e melhor ator para Gregory Peck).

“O sol é para todos” conta a história do julgamento de Tom Robinson, um lavrador negro injustamente acusado de estuprar uma garota branca, numa comunidade do sul dos Estados Unidos nos anos 30. Para a sua defesa, o tribunal designa o advogado branco Atticus Finch. A narrativa segue o ponto de vista de sua filha, a pequena Scout.

A obra tem como tema principal a injustiça racial. Há, porém, um aspecto menos discutido do romance que nos parece bastante relevante e atual: o desprezo pelo direito de defesa.

Numa comunidade cega pelo ódio racial, o advogado e seus filhos passam a ser alvo de represálias. Scout e seu irmão mais velho Jem chegam a ser atacados após o julgamento do caso.

Esse trecho da obra pode ser facilmente relacionado com a forma com que o direito de defesa ainda é visto por parcela importante de nossa sociedade. A reportagem da revista Marie Claire Brasil, publicada em 24 de março de 2021, ilustra bastante esse fato e nos remete ao episódio do livro narrado acima: ela descreve como um grupo de mães planejou transformar em protesto um aniversário dos filhos da advogada Valeska Zanin, que atua na defesa do ex-Presidente Lula, na denominada Operação Lava Jato.

O advogado Cristiano Zanin, que atua junto à advogada Valeska Zanin, foi também alvo de deboche de jornalistas nos meios de comunicação do país pelo simples fato de ter atuado como defensor no processo.

A polarização política em torno do caso citado contribui para explicar o episódio. Tal tipo de polarização, assim como o racismo, a misoginia, a xenofobia, o antissemitismo e o classismo presentes na sociedade podem contaminar o sistema judicial e colocar em xeque a higidez de seus julgamentos. O desprezo pelo direito de defesa talvez seja um dos sintomas mais visíveis desta contaminação.

Sobre a forma como o direito de defesa ainda é visto pela população brasileira, não se pode deixar de observar como a imprensa ajuda a propagar a ideia de que advogado é “defensor de bandido”, numa lógica que inverte a própria noção do devido processo legal, ao se considerar alguém como culpado antes mesmo que ele venha a ser condenado, além de confundir o direito de defesa com o fato que se está levando a julgamento.

Expressões de menosprezo ao profissional que atua na defesa de acusados como “defensor de bandido” e “advogado de porta de cadeia” ainda são comuns.

E, infelizmente, até mesmo o sistema de justiça não nos parece imune a esse tipo de pensamento. A resistência de parte da magistratura à implantação das audiências de custódia – num país com grande número de presos provisórios, números alarmantes de pessoas mortas em confronto com a polícia e em que denúncias de execuções extrajudiciais são comuns – aponta, em certa medida, um incômodo com o exercício do direito de defesa.

O mesmo se diga em relação à resistência do Judiciário em reconhecer a necessidade de remodelar a disposição das salas de audiência e do plenário do júri para que defesa e acusação sejam vistas como partes em situação de igualdade.

A implantação relativamente recente de Defensorias Públicas em vários Estados, tantos anos após a promulgação da Constituição Federal, sem estrutura, carreira de apoio e remuneração dos defensores equiparáveis àquelas do Ministério Público, igualmente indica que o direito de defesa ainda não é visto como prioritário pelo próprio Estado.

Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento quanto de que o reconhecimento do acusado pela vítima deve observar obrigatoriamente as formalidades do artigo 226 do Código de Processo Penal (HC n. 598.886/ SC, relator Ministro Rogério Schietti Cruz). Assim, a vítima deverá fazer uma descrição prévia do ofensor, devidamente registrada. E a pessoa a ser reconhecida deverá ser colocada ao lado de outras que com ela tenham semelhança. Trata-se de uma mudança de décadas da jurisprudência anteriormente consolidada que indicava não haver nulidade na inobservância das formalidades para o reconhecimento feito meramente por fotografias, se não houvesse prova do prejuízo.

A jurisprudência anterior apenas seguia um entendimento bastante consolidado em nosso direito no sentido de que a decretação de nulidade exige prova de prejuízo, algo que desconsidera que a forma no processo penal, por vezes, é a própria garantia. E que coloca sobre os ombros da defesa o ônus de uma prova, por vezes, impossível.

Outro dispositivo por vezes ignorado e pouco compreendido diz respeito ao recolhimento do advogado preso a sala de Estado Maior, nos casos de prisões cautelares. O dispositivo previsto no artigo 7°, inciso V, do Estatuto da Advocacia, pode proteger o advogado de represálias que venha a sofrer do próprio sistema judicial por sua atuação.

O direito de autodefesa, também, não raramente, é atacado, com a tentativa de impor restrições ou condições ao exercício do direito ao silêncio. Há processos em que ainda se adota o entendimento de que o acusado no processo não pode deixar de responder às perguntas formuladas pela acusação, se quiser responder às perguntas da defesa. Ou em que, de maneira sutil e implícita, se busca extrair culpabilidade do silêncio do acusado.

O direito a ampla defesa e ao devido processo legal estão previstos em nossa Constituição Federal (artigo 5°, inciso LIV e LV da Constituição Federal). São garantias inseparáveis daquilo que chamamos de Estado Democrático de Direito. A Constituição prevê, ainda, em seu artigo 133, que a advocacia é indispensável à administração da justiça.

Tais dispositivos são, antes de tudo, imperativos civilizatórios. Infelizmente, ainda há uma visão vigente de que são disposições meramente formais, obstáculos a serem vencidos para a entrega de uma justiça eficiente.

Um dos caminhos para a ocorrência de grandes erros judiciários passa pela limitação ou desprezo ao direito de defesa.

Nosso sistema judicial ainda precisa superar o falso antagonismo entre respeito às garantias da defesa e prestação jurisdicional célere e eficiente. Ou entre o respeito ao direito de defesa e o combate à criminalidade. É esta contraposição que legitima, por vezes, os ataques ao direito de defesa.

O sistema penal brasileiro é notoriamente seletivo. Há uma sobrerrepresentação de negros entre a população carcerária do país. Diversos fatores contribuem para esse fenômeno e o explicam. Dificilmente conseguiremos reverter esse quadro sem atacarmos a percepção existente na população e no próprio sistema judicial acerca da importância do direito de defesa.

Esse é um desafio de comunicação social, das instituições e da própria imprensa. Valorizar o direito de defesa e a Defensoria Pública é uma entre tantas medidas necessárias para combater o arbítrio e a seletividade de nosso sistema penal. Trazer representatividade para dentro do sistema de justiça, advocacia incluída, é outro caminho indispensável.

 

 

Eduardo Pereira da Silva é juiz Federal em Goiânia

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