Um dos comentários mais frequentes neste blog é aquele em que o leitor acredita que o colunista defende determinado ponto de vista porque lhe falta vivência em algum aspecto. Daí, em um misto de raiva com o jornalista, revolta com a sociedade, incapacidade de pensar em saídas estruturais que não resvalem na pura vingança e incompetência para imaginar que não é necessário colocar o dedo na tomada para entender o que é um choque, ele deseja acaba desejando ao outro que sofra o que ele ou que outra pessoa sofreu. Acredita que o sofrimento pessoal é o caminho para a redenção. Poético, religioso, mas, de fato, inútil.
Reuni uma série de comentários que pipocaram por aqui, este ano, com esse teor:
– Quero ver o dia em que um desses bandidos da periferia roubar seu celular.
– Quero ver um dia a sua namorada ser estuprada na sua frente.
– Quero ver o dia em que alguém apontar uma arma para a cabeça das pessoas que você ama.
– Quero ver quando a sua mãe for estuprada.
– Quero ver se um “de menor” (sic) espancasse sua mãe e “aleijasse” (sic) seu pai.
– Queria tanto ver você levando bala desses maloqueiros que você defende.
– Queria que você tomasse um tiro na boca para aprender que bandidagem se resolve a bala.
– Quero ver a polícia dando risada da sua cara, seu japonês idiota, quando você precisar dela.
– Quero ver sua casa ser incendiada por um bandidinho desses que você ama defender.
– Quero ver roubarem sua bicicleta, seu imbecil.
– Queria que seus filhos fossem sequestrados e depois mortos para você parar de dizer essas coisas.
– Queria ver você levar meia hora de porrada para aprender a parar de falar besteira.
– Queria ver você ser estuprado por horas e horas e depois cortarem seus braços e pernas e ser torturado por esses cretinos para entender que tem gente que não merece viver.
Depois de uma lista dessas, não tem como não se sentir querido, não é mesmo? Espero que, em 2014, essa lista linda de desejos não se realize.
Às vezes, percebendo a facilidade como outra pessoa consegue desejar algo ruim para um desconhecido, fico na dúvida se a diferença entre “bandidos” e alguns “mocinhos” reside apenas em uma tênue trava moral (que desaparece quando diluída em álcool ou em drogas lícitas) ou, pior, na oportunidade. Sei que pode haver um abismo entre desejo e ação. Mas quantas vezes esse vale já foi cruzado em um estalar de dedos por “pessoas de bem” que foram “educadas para viver em sociedade”? Não acredito em índole ruim, mas na leitura de contextos. Pena que somos tão iletrados na ciência de viver em sociedade.
Boa parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com nojo. Chega de julgamentos longos e com chances dos canalhas se safarem ou de “alimentar bandido” em casas de detenção. Execute-os com um tiro, de preferência na nuca e cobrando o valor da bala da família, e resolve-se tudo por ali mesmo.
O que anos de políticos imbecis, apresentadores de TV safados e estruturas conservadoras, como a família, a escola e a igreja, têm pavimentado dificilmente será desconstruído do dia para a noite.
O mais engraçado é acharem que defendo que pessoas que cometeram crimes não sejam julgadas e punidas. Sim, elas devem ser punidas, mas de acordo com a lei. Caso justifiquemos exceção para alguns casos, abrimos a porta para um Estado violento, no qual o preço da liberdade é a eterna opressão. O Estado não pode usar os mesmos métodos dos bandidos sob a pena de se tornar pior do que eles, como já foi durante a ditadura, como ainda é quando gera milícias de seu ventre ou quando mata indiscriminadamente negros e pobres das periferias das grandes cidades para garantir a segurança dos que vivem nos centros. Paradoxalmente, pois a base da própria polícia é negra e pobre.
Para contrapor os bandidos optamos pelo terrorismo de Estado ao invés de buscar mudanças estruturais, como garantir real qualidade de vida à população para além de força policial dia e noite. Com uma política de segurança como temos hoje, a violência só aumentará, ao contrário do que espera a sociedade.
Ninguém está defendendo o crime, muito menos bandidos e traficantes (defendo a descriminalização das drogas como parte do processo de enfraquecimento dos traficantes e pelas liberdades individuais, mas isso é outra história). O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade estamos nos tornando.
Do meu ponto de vista, Justiça divina não existe. O universo não conspira a favor ou contra nada. Por isso, quero ver nossa Justiça funcionando aqui e agora. Para o seu bem, para o meu bem, para o bem de todas e todos.
Fonte: Blog do Sakamoto