Entrevista: Núbia de Oliveira fala sobre catálogo Intelectuais Negras Visíveis

Visibilidade e reconhecimento. Essas são as palavras que norteiam e permeiam o catálogo Intelectuais Negras Visíveis, lançado em julho durante a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty. Fruto do trabalho do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, a publicação reúne o trabalho de 160 mulheres negras de cinco regiões do país. Em entrevista para o Canal Ibase, Núbia de Oliveira Santos, Doutora em Educação pela UERJ, Professora da Faculdade de Educação da UFRJ e integrante do Núcleo Gestor do Grupo Intelectuais Negras , fala sobre o movimento de busca por visibilidade dentro e fora do ambiente acadêmico e afirma que o catálogo (disponível para download gratuito) é parte de uma luta cotidiana. “Ele coloca em xeque os lugares esperados e até mesmo confinados a nós, mulheres negras, no Brasil, lugares a priori dados a partir da leitura dos nossos corpos e da textura dos nossos cabelos”, ressalta.

 

Do Canal Ibase

Ibase: Em uma visita recente ao Brasil – e ao Ibase – Winnie Byanyima, CEO da Oxfam Internacional e referência na luta por direitos das mulheres negras, afirmou que é necessário a criação de espaços e disciplinas dentro das universidades que falem sobre cultura e história negra. O Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras é um desses raros espaços existentes aqui no Brasil. Como você vê a mobilização dentro do universo acadêmico para a criação e fortalecimento de iniciativas como a do Grupo?

Núbia: Primeiro gostaria de agradecer o convite e a oportunidade colocar em pauta temas relevantes para o contexto atual. A Universidade, por sempre ter sido um espaço majoritariamente masculino, branco e que valorizou uma cultura eurocêntrica, passa ser, em certo sentido, um espaço de opressão para a mulher negra, na medida em que esta não se vê representada – seja como docente, seja como referência teórica –, sendo que mais recentemente, com as políticas de ações afirmativas dos governos Lula e Dilma, conseguimos ter alunos e alunas negras em nossas salas de aula. Vejo o Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras, de fato, como um espaço que não somente trata da cultura e história negra dentro da Universidade, mas também busca promover, via academia, diversas ações, eventos, projetos de extensão e pesquisa que colocam em debate experiências que dizem respeito a ser mulher Negra, como feminismos negros, sexualidade, gênero, raça e classe. O que percebo é que a universidade ainda precisa ser entendida como um espaço privilegiado para essas iniciativas. A própria presença de uma maior diversidade racial dentro da Universidade já aponta demandas para essa mobilização. No caso do Grupo, ele busca caminhar valorizando o lugar potente que as discussões sobre relações raciais no Brasil vêm ganhando.

Ibase: Como nasce a ideia do catálogo Intelectuais Negras Visíveis? Qual a importância desta publicação? 

Núbia: O catálogo Intelectuais Negras Visíveis, idealizado por Giovana Xavier, do qual eu tive o privilégio de participar como pesquisadora, nasce da necessidade de criação de políticas públicas que confiram visibilidade aos diversos saberes de mulheres negras. O sucesso da campanha “Vista nossa palavra Flip, 2016”, que partiu da simples indagação: “Onde estão nossas Autoras Negras?”, já deu o tom dessa necessidade de focar na visibilização e valorização da mulher negra em seus diferentes campos de atuação. Essa publicação ganha importância por ser um catálogo-portfólio que reúne informações biográficas e profissionais de mulheres negras atuantes nas cinco regiões do país. Um primeiro balanço dos diversos lugares ocupados por mulheres negras na produção de conhecimento. Ele coloca em xeque os lugares esperados e até mesmo confinados a nós, mulheres negras, no Brasil, lugares a priori dados a partir da leitura dos nossos corpos e da textura dos nossos cabelos.  É um trabalho que tem o diferencial de ter sido idealizado por uma mulher negra e produzido por mulheres negras. Ou seja, é um trabalho que reflete o “nós por nós mesmas”, nos olhando e nos reconhecendo naquilo em que somos visíveis também a cada uma de nós.

Ibase: O catálogo inova ao dilatar o conceito de intelectual para além das determinações acadêmicas. Como surgiu essa necessidade de ampliação? E como isso foi recebido no ambiente acadêmico?

Núbia: Compreender os sentidos múltiplos do que é ser uma intelectual negra é também uma forma de resistência a uma ideia de saber hierarquizado. Bell Hooks em seu texto “intelectuais Negras” afirma que o conceito ocidental de quem e o que é um intelectual é sexista e racista, na medida em que elimina a possibilidade de percebermos nesse lugar mulheres negras como representativas de uma vocação intelectual. Assim, entender o conceito de intelectualidade de forma dilatada é compreender uma Intelectualidade validada não somente pelos estudos acadêmicos ou pela Universidade. É concebê-lo também a partir de outras epistemologias. Pensar por exemplo que o texto não é a única forma de produzir e circular conhecimento. Isso encontra a cultura africana, que é também calcada na narrativa e na ancestralidade como formas de construção identitária. Bom, sobre como isso foi recebido no ambiente acadêmico, vale lembrar que esse catálogo nasce em ambiente acadêmico e, portanto, este debate já está colocado, o que não significa que nessa correlação de forças, não haja ainda as tentativas de silenciamento.

Ibase: Podemos considerar a invisibilidade imposta, principalmente às mulheres negras, nas mais diversas esferas, como um dos braços mais cruéis do racismo e do machismo?

Núbia: Sim, sem dúvida. São muitas as esferas em que as mulheres negras são negligenciadas e violentadas. Suas vulnerabilidades são invisibilizadas e muitas vezes minimizadas, seja na violência doméstica, no campo da saúde, no preterimento sofrido no mercado de trabalhado, nos dados do feminicídio que apontam as mulheres negras como as principais vítimas, dentre tantas outras estatísticas cruéis causadas pela discriminação, pelo racimo e sexismo que fragilizam até mesmo a construção do reconhecimento de si como mulher negra. Essa invisibilidade das vulnerabilidades se desdobra também na invisibilidade das suas potencialidades. Numa sociedade machista e racista como a nossa, há uma dificuldade em reconhecer a mulher negra como produtora de cultura e conhecimento. É como se a mulher negra estivesse sendo posta sempre à prova de que merece ocupar os lugares que ocupa.

Ibase: Quando você percebeu que a luta por visibilidade era algo a que você deveria se dedicar?

Núbia: Creio que para a grande maioria das mulheres negras essa é uma luta constante num país racista como o nosso. A ideia de Visibilidade está no enfrentamento do racismo e da discriminação. De alguma maneira, o entendimento e a própria compreensão de que ser parte de uma classe menos favorecida mascarou o racismo que sofri ao longo da vida situou a necessidade de olhar para a invisibilidade da mulher negra de forma mais atenta. Hoje, como acadêmica, professora universitária, essa dedicação se faz cada dia mais necessária, pois esse reconhecimento não é tranquilo. Já enfrentei situações dento da academia de ter que responder perguntas do tipo: “Você é daqui?”, “Você é aluna ou funcionaria?”, porque mulher negra como professora em uma universidade ainda não é lugar-comum. A luta por visibilidade diz respeito a não ser julgada primeiro pela cor da pele ou a textura do cabelo.

Ibase: Falando sobre mudanças no país, qual a importância da Lei de Cotas nas universidades e a lei que torna obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas para a ampliação do debate sobre racismo no Brasil? 

Núbia: A Lei de cotas nas Universidades, falando mais especificamente das questões raciais – que é o tema da nossa conversa aqui –, como uma modalidade de ação afirmativa representa uma conquista muito importante, dado o percentual de negros e negras que faz parte da população brasileira e sempre estiveram historicamente alijados até mesmo do sonho de cursar uma Universidade. O debate sobre cotas coloca em foco o privilégio branco e a necessidade de criação de políticas eficazes no combate à desigualdade racial. A Lei de cotas nasce também do reconhecimento de que vivemos em um país racista e desigual em termos raciais. Cabe ressaltar que essas conquistas são fruto da luta histórica dos movimentos negros no Brasil e das demandas que esses movimentos têm colocado para sociedade brasileira. Do mesmo modo, a Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, é resultado também do reconhecimento de que a cultura afro-brasileira sempre foi invisibilizada do currículo escolar. Essa alteração da LBD é o que a Nilma Lino Gomes chama de “visibilidade emancipatória das relações ético-raciais na sociedade brasileira e na educação brasileira”, ou seja, a implementação dessa Lei revela a necessidade da valorização da história dos povos africanos em nosso país.

Ibase: Até o ano passado, a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) tinha poucos (ou raros) autores e autoras negras entre seus convidados. Este ano, ao homenagear Lima Barreto, o evento, ao contrário, teve muitos negros e negras presentes, tanto na plateia, quanto entre os autores. O catálogo Intelectuais Negras Visíveis foi lançado durante a FLIP. Você considera essa mudança no evento um tipo de conquista de espaço? Como garantir que ele sempre estará aberto?

Núbia: Sim, com certeza. A Flip, como você apontou, tem sido um evento majoritariamente branco, tanto pelas autoras e autores homenageados, quanto pelo público que sempre atraiu. Esse ano chegou a ter, em sua programação, um percentual de 30% de autores e autoras negras a mais se comparado ao anterior. O que é significativo, se pensarmos na história do evento.  Isso se deve também a um contexto de lutas e reivindicações pelo reconhecimento da qualidade das obras de autores e autoras negras invisibilizados. O que almejamos é que essas não sejam iniciativas pontuais, admiradas justamente pelo seu caráter inusitado. Para tanto, precisamos de curadorias comprometidas também com essas questões, como aconteceu na FILP 2017. Curadorias que reconheçam a necessidade da promoção da diversidade racial, a qualidade e a importância do conhecimento produzido por autores e autoras negras e como disse a própria Conceição Evaristo no lançamento do Catalogo Intelectuais Negras Visíveis: “Não é uma concessão. É um direito estarmos aqui… E é fruto da luta coletiva”. Que de fato tenhamos eventos como este, com presenças significativas de público, autores e autoras negras, tendo suas obras divulgadas, conhecidas e reconhecidas.

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