‘Escravo reprodutor’ teve mais de 200 filhos e viveu 130 anos, afirma família

‘É uma história verdadeira, não é uma lenda’, diz neta de São Carlos (SP). Para pesquisador, memória de Roque José Florêncio precisa ser resgatada.

Por Stefhanie Piovezan Do G1

“É uma história verdadeira, não é uma lenda”, diz Maria Madalena Florêncio Florentino enquanto segura a foto do avô. Nascido em Sorocaba na primeira metade do século XIX, Roque José Florêncio foi comprado por um fazendeiro de São Carlos (SP) e escolhido para ser “escravo reprodutor” no distrito de Santa Eudóxia. Familiares e um estudo afirmam que ele teve mais de 200 filhos e, segundo a certidão de óbito, morreu com 130 anos.

O documento, lavrado em 17 de fevereiro de 1958, aponta que Roque morreu por insuficiência cardíaca, miocardite, esclerose e senilidade. A quantidade de filhos estaria contabilizada em um antigo livro da Fazenda Grande. Mas a família diz que não tem documentos que comprovem os nascimentos e procura os descendentes nas redes sociais.  “No Broa tem, em São Paulo, Araraquara, mas, quando eu pergunto, dizem que não sabem. É uma incógnita”, afirmou o neto Celso Tassim, de 54 anos.

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De acordo com Marco Antonio Leite Brandão, pesquisador da história de São Carlos, o documento mais antigo sobre escravidão na cidade é de 1817. Ele diz ainda que o auge da mão de obra forçada se deu a partir de meados da década de 1860, com a expansão do café.

“O mais importante, talvez, das pesquisas que realizei foi a identificação de uma rota de comércio de escravos entre a Província da Bahia, centralizada no município de Caetité, e São Carlos. Havia, de fato, um mercado de escravos, a Fazenda Babilônia, limite entre São Carlos e Descalvado”, afirmou. “Mas nada sobre reprodutores ou sobre Pata Seca”.

A história oficial tende a forçar o esquecimento da memória negra”

Para o psicólogo Marinaldo Fernando de Souza, doutor em educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) com uma tese que aborda a história de Pata Seca, a explicação para a falta de documentos está na desvalorização da memória negra. “A história oficial tende a forçar o esquecimento da memória negra”, disse. “Em Santa Eudóxia existe uma história a ser vasculhada, a ser contada, e que fica relegada a um status de menor valor”.

Segundo Souza, estima-se que mais de 30% dos moradores de Santa Eudóxia sejam descendentes de Roque e o papel dele como produtor pode ajudar a explicar por que o número de escravos na região continuou a aumentar mesmo depois de restrições como a Lei Eusébio de Queirós.

“Se fosse um branco, não seria lenda. Ele é real, foi escravizado”, comentou. “Essa história precisa ser resgatada e não precisa de documentos. Os documentos são forjados em prol da elite branca. A memória negra precisa vir à tona”.

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‘Pai de mais de 200’
A família conta que Roque foi comprado na Vila Sorocaba e vendido para Visconde da Cunha Bueno, dono de um latifúndio voltado para a produção de café. Na propriedade, ganhou o nome e o apelido de Pata Seca pelas mãos compridas e finas.

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Como era alto – tinha 2,18 m – e, na época, acreditava-se que homens com canelas finas gerariam filhos do sexo masculino, foi escolhido para se deitar com as escravas e gerar mais mão de obra.

Também cuidava dos cavalos e era responsável pelo transporte de correspondência entre a fazenda e a cidade.

Segundo a neta, foi como ‘correio’ que ele conheceu a esposa. “Ele ia buscar as cartas em São Carlos e, quando passava, via uma moça magrinha, barrendo, barrendo”, contou Madalena.

Um dia, ele pediu a mão da moça e, com o “sim”, colocou a jovem na garupa e rumou para a fazenda. Foi celebrado o casamento e Roque ganhou dos patrões 20 alqueires de terra. Depois de gerar mais de 200 filhos na senzala, era hora de formar a própria família com Palmira, com quem teve mais nove crianças.

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Multitarefa
Sem arame para cercar todo o terreno, Pata Seca acabou perdendo grande parte da propriedade. Para sustentar a família, fazia canecas e assadeiras com lata, criava galinhas, plantava abobrinha e mandioca e preparava rapaduras. Depois, saía para vender os ovos, utensílios e doces por fazendas da região.

“Ele tinha um cavalinho e, como era muito grande, arrastava os pés no chão. Falavam que ele ia acabar matando o animal e ele dizia que não, que era o ganha pão dele”, afirmou Madalena.

Amigo de Roque, Marcílio Corrêa Bueno, de 88 anos, se lembra dessa época. “Eu morava na fazenda Grande e, nesse tempo em que eu morei lá, ele ia vender ovo, frango, rapadura. Fazia uma rapadura! De coco, abóbora, mamão, leite, cidra…”.

“Se dava com todo mundo, meu pai se dava muito com ele”, lembrou o aposentado, recordando ainda que Pata Seca era religioso e costumava realizar festas no sítio em homenagem a São João, sempre recebendo bem os convidados.

Memórias
Madalena também guarda memórias do convívio com o avô e não esconde o orgulho ao falar dele.De pequena, lembra-se de Roque sempre de camisa branca e postura ereta.

Conta que Pata Seca fazia questão de varrer todos os dias a parte ao redor da casa do sítio, cercada por mangueiras, e que o café era preparado por tio Zé. Roque sempre comia fubá mexido na panela com banha de porco e café preto, e levava o café para Palmira, que ficou cega depois de complicações em um dos partos. Já no almoço, costumava comer arroz e feijão com torresmo ou frango.

Para dormir, deitava-se em uma cama de tarimba com colchão de palha de milho. Para os netos, foi dessa cama que caiu o prego que feriu o pé do avô. “Pegou bicheira. Usaram o remédio da senzala – fumo, urina e álcool – e uma moça cuidava, mas ela viajou para Rio Preto e ele piorou”, disse Madalena.

Internado na Santa Casa de São Carlos, Roque morreu em fevereiro de 1958, apenas três meses depois de participar do desfile de aniversário da cidade como o homem mais velho do município.

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“Achei a foto”
A única foto do patriarca é justamente desse desfile e foi encontrada depois de anos de procura. Madalena descobriu que um antigo amigo do avô possuía a imagem e, após diversas buscas, familiares desse senhor encontraram o retrato na carteira dele.

Hoje, a imagem fica na estante da casa de Madalena, bem de frente para quem entra na sala. Também há lembranças atrás da porta, onde ela guarda as antigas chaves da casa do sítio e um prego como o que caiu no pé do avô, e na cozinha, ao seguir a mesma receita para produzir rapaduras.

Para ela, o avô viveu muito porque, ao contrário de outros escravos, morava na Casa Grande e podia se alimentar melhor, e a pesquisa sobre esse passado continua. Ela segue à procura de informações e diz que antes de morrer pretende doar as recordações para um museu. “Fico muito feliz, muito orgulhosa de contar a história do meu avô”.

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