Quando buscaram os Negros na África,
trazendo-os como bichos amontoados em uma nau,
ignorando suas paixões, estórias e a própria raiz ancestral,
Foi escrito em negro e nos negros: sina trágica!
No momento em que chegavam ao Cais do Valongo,
Mortificados em corpo e alma pelos dissabores do trajeto;
Travessia oceânica que pelo medo, pela ira e pela fome fazia-se mais longa,
Escrito em pele negra foi: Objetos!
No momento em que chegavam às senzalas com seus cabelos “Sarárá,”
pele negra, dentes brancos, falando em dialetos nagô, suaíli ou banto,
o povo da casa grande se perdia em olhares; ainda que ninguém se atrevesse nada a falar;
Era ali escrito em negras pele, talvez por medo ou ignorância: Espanto.
Na ração regrada e seca que aos negros era ofertada,
Na água barrenta e lameada que não lhes provia da sede a saciedade,
No preparar e não comer os quitutes da casa grande abastada,
Nas bocas e línguas negras, era escrito em tintas famigeradas: Desumanidades…
No trabalho braçal, bossal e desmedido,
de sol a sol, de chuva a chuva repetidos,
Não importando o calor ardente dos dias ou no lombo a chuva fria,
marcava-se nas peles negras: nada valiam…
Nas violências ao corpo e alma, repetidas e imbricadas,
No tratamento desumano, impostos aos negros, como castigo e opressão,
No zunir do chicote que corta o vento e inflige-lhes punição,
Tatua-se traumaticamente nas peles, mas não na alma: feras indomadas…
No interdito posto a fala, aos dizeres e aos saberes, sem chamas ou incenso,
mais que ignorar o que o negro tinha a dizer, ignorava-se os sujeitos.
Calava-se assim todo grito ou sussurro, queixa ou pleito!
Marca-se assim mais uma palavra escrita a sangue e sal: Silêncio!
Desmontado-se as tradições e as memórias,
Mudando-se os nomes e os santos, até o dialeto de devoção,
Tenta-se aniquilar o pouco da terra natal que os negros ainda traziam no coração…
No ato de branquear as negras lembranças, tenta-se: apagar a história.
Na dança que se dançava nas senzalas,
No defender-se manifesto pelo gingado da capoeira,
que aos olhares brancos só significava uma agressão vil e traiçoeira!
Em dialeto universal era escrito, a carvão e a chicote, mais uma palavra negra: Batalha!
Quando as negras tinham seus corpos, pelos senhores violados,
quando sem vergonha ou pudor eles lhes penetravam as carnes, de forma impura e obscena
Não se continham pela religião, pela moral ou por costumes: era luxúria apenas!
Escrevia-se assim, ao som de gritos, a traços de suor e sangue virginal: pecado!
No contraforte que esta história aponta,
Na tentativa dura e vera de resistir as agressões e aos impostos tombos,
organiza-se em matas fechadas e densas a resistência pelos quilombos.
Desta vez quem escreve é o negro e o branco é quem tenta aniquilar a palavra: Afronta!
No amamentar um filho que não era o seu,
Ao transpor alimento, afeto e amor ao filho do patrão,
as Mães de Leite alimentavam um ser que como mãe muitas vezes não a reconheceu!
Escrevia-se assim na pele negra, com tinta branca feito leite: Ingratidão!
No mercado de escravos, cabeças raspadas e dentes amostra, valiam algo os desvalidos.
Valor não pela essência, valor como objetos, feito animais ali eram vendidos,
pouco importavam se tinham família ou qual fim teriam
E assim em pele negra colocava-se uma etiqueta escrito em negro: Mercadoria!
No açoite infligido por outros negros a mando branco, feridas abertas e não esquecidas,
Capatazes, feitores ou capitães do mato tornavam-se algozes,
Na preservação de si, ignoravam os gemidos emitidos pelas negras vozes!
Ditava-se mais um vernáculo a tatuar-se em negros escritos: Fratricida!
O ato abolicionista por uma princesa foi assinado,
mas o Real da estória, saibam vocês, nem sempre foi fielmente contado.
Negros alforriados, negros expulso das terras para onde como bicho foram levados!
Uma palavra nova à eles foi assim ensinado, verbo no pretérito conjugado: Despojados!
Na busca da sobrevivência que se deu daí então,
Em negras formas buscavam conseguir, teto e provisão.
Aos morros e baixios foram relegados, e foi ali que fizeram suas cidadelas,
surge mais uma palavra escrita em tantos e tantos negros: Favela!
Neste novo aglomerado urbano, Sujo e torpe, torto e improvisado,
Os negros se amontoam como antes, numa nova espécie de senzala;
casa sem vela, sem água; sem pão e sem chicote; trapos poucos e puídos a ocupar a mala,
Lê-se assim, se os negros escravizados soubessem ler, mais uma palavra: abandonados.
Nos tempos atuais, para justificar a barbárie, silenciar lembranças e dizeres inconsequentes,
Fala-se de algo impalpável, rancoroso e incoerente. Uma palavra bonita, mas vazia…
Como podemos querer ver quem vai mais longe, se cada um parte de um ponto diferente?
A essa falácia, que querem mais uma vez escrever em negro, dá-se o nome de meritocracia.
Por mais que a escravatura pareça temporalmente muito distante,
Os grilhões invisíveis ainda estão por aí, acorrentando, tangendo…
Todos os dias o povo negro se levanta e segue como possível for, adiante!
Outra expressão inscrita na pele negra com tinta que não apaga: Escravos continuam sendo!
Tantas palavras Escritas em Negro, tantas palavras sem nenhum sentido,
pois quem as escreveu não foi o negro. Palavras escritas por brancos com tons de opressão!
Testemunho de todo sofrimento que o negro sofre nesta terra desde tempos idos,
Espécie de funesto memorial para que ninguém esqueça como é no nosso país a escravidão!
Além destas palavras, há muitas outras, ditas no correr do tempo e na sua transitoriedade:
A pele negra foi usada para escrever estórias de tortura e sofrimento!
Por mais que não seja a estas palavras que contam o lado negro da verdade,
se prestam para que esta página amoral da nossa estória caia no esquecimento!
Mariana, 20 de Novembro de 2020
Homero Flávio Peixoto Gonçalves