Frantz Fanon, racismo e pensamento descolonial

Li recentemente em um artigo publicado no site Cafezinho que os quatro candidatos presidenciais que atualmente se apresentam como de “esquerda” se diferenciam entre aqueles que priorizam as pautas identitárias, desenvolvimentismo, nacionalismo e um mix entre estas perspectivas. O interessante é que o artigo vincula a defesa das agendas propostas pelo movimento negro (e também o feminista e o LGBT) ao que chama de “identitarismo”.

Ao diferenciar, inclusive, a dimensão de defesa das pautas antirracistas (colocadas no campo do “identitarismo”) e de desenvolvimento nacional (colocadas no campo da macropolítica estrutural), o artigo corrobora a ideia de que o racismo está desvinculado das lógicas de relações de classe.

Boa parte desta compreensão decorre da ideia de que o sistema capitalista tem uma generalidade estruturante (a sua base econômica) que determina as demais relações sociais, culturais e políticas (inclusive as raciais, de gênero, de orientação sexual etc). Daí o seccionamento entre políticas mais gerais (sempre no campo da dimensão econômica mais geral) e a agenda do movimento antirracista (colocada no campo das “identidades” e do reconhecimento das diferenças).

A obra do pensador Frantz Fanon, nascido na Martinica em 1925 e morto com apenas 36 anos, em 1961, apresenta pistas importantes para a superação desta dicotomia que é ainda comum em alguns analistas políticos como o autor do artigo mencionado. Deivison Mendes Faustino, professor da Universidade Federal de São Paulo e autor do livro Frantz Fanon, um revolucionário, particularmente negro (com lançamento marcado para esta semana), explica que há uma aproximação das bases epistemológicas do pensador da Martinica com Hegel. Isto porque Hegel vê a alienação como uma perda objetiva de si, da capacidade de autodeterminação.

Fanon considera que as estruturas sociais coloniais são introjetadas na subjetividade do colonizado e a mudança dependeria de uma transformação radical das estruturas da sociedade.

Na obra Pele negra, máscaras brancas (1952), Fanon afirma: “Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século 19, Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é só uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo, para responder à exigência de Leconte e Damey, digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um sócio-diagnóstico. Qual o prognóstico? A Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa a influência humana. É pelo homem que a sociedade chega ao ser. O prognóstico está nas mãos daqueles que quiserem sacudir as raízes contaminadas do edifício”.

Tem-se, assim, uma “reificação” da alienação colonial que será expressa também na própria “invenção” do ser negro feito pelo outro demonstrada por Fanon nesta passagem:

“’Olhe, um preto!’ Era um stimulus externo, me futucando quando eu passava. Eu esboçava um sorriso. ‘Olhe, um preto!’ É verdade, eu me divertia. ‘Olhe, um preto!’ O círculo fechava-se pouco a pouco. Eu me divertia abertamente. ‘Mamãe, olhe o preto, estou com medo!’ Medo! Medo! E começavam a me temer. Quis gargalhar até sufocar, mas isso tornou-se impossível. Eu não aguentava mais, já sabia que existiam lendas, histórias, a história e, sobretudo, a historicidade que Jaspers havia me ensinado. Então o esquema corporal, atacado em vários pontos, desmoronou, cedendo lugar a um esquema epidérmico racial. No movimento, não se tratava mais de um conhecimento de meu corpo na terceira pessoa, mas em tripla pessoa. Ia ao encontro do outro… e o outro, evanescente, hostil mas não opaco, transparente, ausente, desaparecia. A náusea…”

Estes construtos psíquicos do ser negro advindos desta reificação do processo colonial coloca o pensamento de Fanon próxima a uma perspectiva descolonial. Isto porque a superação do racismo aqui se articula com a descolonização – a “descolonização das mentes”, como ele afirma em Os condenados da terra (1961) – o que significa uma transcendência do racismo do comportamento expresso nas relações individuais para uma estrutura social que reifica o pensamento colonizador. E, assim, a construção de um verdadeiro Humanismo só se daria com o fim da exploração do ser humano pelo outro ser humano, ou seja, com o fim de todas as hierarquias.

Ora, ver o racismo nesta perspectiva fanoniana é ir muito além de identitarismos. E tampouco não é seccionada de um projeto desenvolvimentista nacional, pois uma visão autônoma de nação passa, necessariamente, pela “desalienação” e “des-reificação” das estruturas mentais colonizadas na qual o racismo é a principal expressão.

Por isso, o pensamento de Fanon tem sido apropriado por vários pensadores que se colocam na perspectiva descolonial, combatendo o que Quijano chama de “colonialidade do poder”, de reposicionamento das nações do chamado Terceiro Mundo no sistema global. Em outras palavras, o pensamento de Fanon nos mostra que qualquer projeto nacional dissociado do enfrentamento do racismo não se sustenta. E também não se sustenta pensar o racismo apenas na perspectiva identitária.

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