Certamente quando foi acertado que a validade da EC nº 53, no distante dezembro de 2006, ninguém imaginaria que sua rediscussão seria feita no meio de uma pandemia e tendo o Brasil governado pela extrema-direita.
Na noite do dia 21 de julho, por quase unanimidade, foi aprovado o texto da PEC do Novo Fundeb. Qualquer avaliação do seu conteúdo precisa levar em conta o contexto político e econômico em que a votação ocorreu e o papel dos atores e atrizes sociais que participaram ativamente de sua formulação.
Neste primeiro post vou enumerar as principais mudanças que foram aprovadas e o que ainda pode ser terreno de disputa, durante a tramitação no Senado e, principalmente, na regulamentação. Não vou usar a ordem que aparece na PEC aprovada, posto que ela segue a numeração da Constituição e não o grau de importância dos seus itens.
1. Tornou o Fundeb algo permanente na Constituição. Durante 24 anos a política de fundos esteve inserida no artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Agora, o seu formato está no artigo 212-A da parte permanente. Isso dá estabilidade ao investimento feito tendo por base seus recursos. É óbvio que nossa Constituição já sofreu muitas mudanças e nada garante retrocessos, mas representa um avanço.
2. Manteve a cesta de impostos bloqueados pelo fundo, acrescentando os recursos originados da compensação financeira da Lei Kandir. Continuou bloqueando 20% dos impostos arrecadados ou transferidos para Estados e Municípios. Continuaram de fora da regra geral os recursos próprios municipais e os 5% restantes da vinculação constitucional. A dinâmica de redistribuição dos recursos bloqueados em cada fundo estadual se manteve inalterada, ou seja, divide-se a projeção de receita pelo número de alunos matriculados no ano anterior. Cabe a legislação regulamentadora estabelecer os fatores de ponderação entre etapas e modalidades.
3. Aumentou o percentual de complementação da União (de 10% para 23%) e criou três formas de redistribuição desses recursos:
a. 10% serão redistribuídos no mesmo formato atual. Estabelece-se um Valor Anual por Aluno Nacional e verifica-se que fundos estaduais podem receber os recursos. Isso tem significado atender de nove a dez estados, contemplando redes estaduais e municipais neles incluídas. Neste caso, mantém-se a dinâmica atual.
b. 10,5% serão redistribuídos para cada rede pública de ensino municipal, estadual ou distrital, sempre que o valor anual total por aluno (VAAT), referido no inciso VI, não alcançar o mínimo definido nacionalmente. Todos os municípios que estiverem abaixo do VAAT terão direito a receber.c. 2,5% “nas redes públicas que, uma vez cumpridas condicionalidades de melhoria de gestão previstas em lei, alcançarem evolução de indicadores a serem definidos, de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, nos termos do sistema nacional de avaliação da educação básica”. Esse percentual foge do desenho conhecido de redistribuição via valor por aluno e ainda não sabemos o formato que será usado.
4. Para o cálculo do VAAT serão considerados os seguintes recursos:
a. Recursos bloqueados e participantes do Fundeb (20% dos recursos de impostos vinculados);
b. Receitas de Estados, Distrito Federal e Municípios vinculadas à manutenção e desenvolvimento do ensino não integrantes dos Fundos;
c. Cotas estaduais e municipais da arrecadação do salário-educação; e
d. Complementação da União transferida a Estados, Distrito Federal e Municípios nos termos da alínea “a” do inciso V do caput, ou seja, os 10% atuais.
5. Os percentuais de complementação possuem um escalonamento que alcançará o total no sexto ano de vigência do novo fundo, sendo: 12% (doze por cento), no primeiro ano; 15% (quinze por cento), no segundo ano; 17% (dezessete por cento), no terceiro ano; 19% (dezenove por cento), no quarto ano; 21% (vinte e um por cento), no quinto ano; e 23% (vinte e três por cento), no sexto ano;
6. Dos 10,5% citados acima, 50% deles será destinado a educação infantil. E é admitida, na forma da lei, a destinação desses recursos às instituições referidas no caput do art. 213 (entidades comunitárias, filantrópicas e confessionais).
7. Foi mantida exigência de que os recursos oriundos do fundo sejam aplicados pelos Estados e Municípios exclusivamente nos respectivos âmbitos de atuação prioritária, conforme estabelecido nos §§ 2º e 3º do art. 211.
8. Manteve-se também o dispositivo de que a “vinculação de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino estabelecida no art. 212 suportará, no máximo, 30% (trinta por cento) da complementação da União”.
9. Proporção não inferior a 70% (setenta por cento) de cada Fundo será destinada ao pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício. Porém, aqueles municípios que receberem recursos oriundos dos 10,5% de complementação devem comprovar que aplicaram 15% (quinze por cento) para despesas de capital, ou seja, para estes recursos foi estabelecido um teto de gasto com pessoal de 85%. Antes o mínimo era de 60% e somente para profissionais do magistério.
10. Foi constitucionalizado o CAQ com a seguinte redação: “O padrão mínimo de qualidade de que trata o § 1º deste artigo considerará as condições adequadas de oferta e terá como referência o custo aluno qualidade, pactuados em regime de colaboração na forma do disposto em lei complementar, conforme o art. 23, parágrafo único. ”
11. Ficou vedada a utilização de recursos da contribuição do salário-educação para garantir a complementação da União.
12. Os critérios de distribuição da complementação da União e dos fundos serão revistos em seu sexto ano de vigência e, a partir desta primeira revisão, periodicamente, a cada dez anos.
Para abrir o debate avaliativo, enumero as derrotas que o governo sofreu no texto aprovado, o que dá a dimensão da vitória do dia 21 de julho, mas nos deixa alerta para acompanhar e manter a pressão na tramitação no Senado Federal.
Apesar de ausente e com pouco ou nenhum protagonismo, o governo apareceu no final da tramitação na câmara para diminuir os avanços conquistados na primeira versão pública de 2020 do Relatório da Deputada Dorinha. O que o governo queria?
1. Queria a todo custo diminuir o valor de complementação da União;
2. Queria usar a cota federal do salário-educação para cobrir parte do aumento do percentual de complementação;
3. Tentou derrubar o aumento do percentual mínimo de repasse para remuneração dos profissionais da educação;
4. Queria adiar a vigência do novo fundo para janeiro de 2022, não deixando claro o que existiria no ano de 2021; e
5. Ao ver que não dava jogo diminuir o percentual de 20% que estava em debate, tentou vincular 5% para o projeto de renda básica que o governo discute, mas que ninguém conhece o seu formato. Um formato desejado pelo governo seria usar o dinheiro para financiar um voucher para educação infantil (para compra de vagas em escolas privadas).
Como podemos ver, o governo foi derrotado no principal. Aparentemente parece contraditório que no final o percentual tenha subido para 23%, ao invés de descer para 15% (proposta real do governo), mas esse aumento ficou atrelado a uma janela de disputa que teremos que travar sobre o uso dos recursos vinculados a educação infantil e que o texto admite poder ser usados junto às instituições sem fins lucrativos.
A pressão social gigantesca que foi feita nos 3 dias que antecederam a votação foi decisiva. Isso mostra que, especialmente em ano eleitoral, parlamentares são mais sensíveis ao humor do seu eleitorado. Destaque para o trabalho exemplar feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, rede de entidades e ativistas, que ocupou de forma ostensiva as redes sociais de todos os parlamentares.
Agora, seguimos para a segunda batalha no Senado Federal. E, após a promulgação, teremos ainda longa batalha na regulamentação, espaço que o governo tentará embutir os seus interesses privatistas.