Este poderia ser um texto sobre Lili, a heroína adolescente de uma história em quadrinhos que resolve, como tantos outros heróis das HQs, aplicar aos criminosos sua própria noção de justiça. Abusada na infância, ela combate toda sorte de feminicidas e pedófilos.
Por Janaina Garcia, da Universa
Acontece que este virou um texto sobre a criadora de Lili, a ilustradora carioca Juliana Lossio Guerra, 24 anos. Isso porque, por causa de sua personagem, ela passou a sofrer ameaças contra sua vida.
Elas começaram, segundo Juliana, depois de que páginas do Facebook ligadas a movimentos de direita passaram a compartilhar não somente a HQ com interpretações enviesadas como também fotos pessoais de Juliana e a associação dela à figura da “feminista maluca que odeia homens”. Ela expôs o caso em seu perfil no Twitter.
Na última sexta-feira (24), por meio de advogadas do Instituto Anjos da Liberdade, a ilustradora encaminhou as ameaças ao Ministério Público do Estado do Rio para que as pessoas que fizeram isso — a maioria, diz, homens — sejam investigadas e processadas, civil e criminalmente. “Acham minha arte agressiva porque uma jovem mata seus abusadores. Se fosse um homem atacando ou matando pedófilos nos meus quadrinhos, eu seria ovacionada por essas mesmas pessoas”, constata.
Ainda que modificada pela ficção — na vida real, ninguém morre —, a inspiração para a história de Lili veio da própria autora. A ilustradora falou com Universa sobre a arte que rendeu a ela uma maneira de se comunicar com mulheres e homens vítimas de abuso e também uma espécie de terapia sobre um trauma da própria infância — dos 9 aos 11 anos, ela foi abusada, assim como as duas irmãs, por um primo mais velho.
Você tem 24 anos e faz ilustrações desde os 14. Em que momento decidiu que desenharia sobre violência contra a mulher?
Comecei a desenhar por causa de uma depressão: era o meio que eu tinha de tratar de coisas pelas quais eu havia passado, mas que, só com palavras, não sabia externar. De 2016 para cá, “descobri” que sofri abuso quando era criança, e, a partir disso, comecei a virar minha arte para esse lado, no mundo dos quadrinhos, querendo sempre passar informações sobre pedofilia, sobre abuso. Queria contar o que havia acontecido, de alguma forma, e ajudar as pessoas como quisessem.
Como foi essa descoberta em 2016?
Fui abusada pelo meu primo dos meus 9 aos 11 anos. Quando começou, ele tinha mais ou menos 16, 17 anos. Abusou não só de mim, como de minhas irmãs — uma mais nova e uma mais velha que eu. Só fui ter noção de que havia sofrido essa violência quando eu tinha 17 anos, mas minha família só soube em 2016, porque comecei a fazer terapia e o trauma veio à tona. Minha terapeuta contou aos meus pais, então falei com minhas irmãs e elas me disseram que também haviam sido abusadas da mesma forma por ele. Tivemos a sorte de ter pai e mãe nos apoiando. Conversamos as três irmãs e decidimos denunciá-lo no mesmo ano. Virou um processo, e, como a família dele não acreditou, acabamos nos afastando. Acho que algo se quebrou.
Como isso afetou você na adolescência e, posteriormente, na vida adulta?
Afetou muito minha vida amorosa, sexual, a ponto de eu sempre achar que, de alguma forma, estava em perigo. Namoro o mesmo cara desde os 15 anos, mas é muito difícil, ainda, confiar em homens em geral. É como um bloqueio para lidar com eles.
E por que inserir no trabalho o que, para muitas outras vítimas, é sempre doloroso rememorar?
Meu foco foi ajudar as pessoas — e eu raramente as via falarem sobre isso. Comecei a publicar meus desenhos e informações sobre abuso nem que fosse para passar alguma informação mais didática a partir do que eu passei como sobrevivente de um abuso. Sempre recebi muito apoio, especialmente de mulheres de 40, 50 anos que sofreram isso quando crianças e até hoje não conseguem falar a respeito.
Chegaram mensagens menos encorajadoras?
Sim. Uma que me deixou muito chocada foi enviada no Youtube por um sujeito que disse abertamente: “Sou um pedófilo”. Ele começou a me escrever sugerindo que eu perdoasse meu abusador porque ele era “um pobre coitado” como ele, que “sofre muito, um doente”. A tal ponto de justificar que a única coisa que o aliviava era ver fotos de meninos nus. Ele me escreveu isso como se fosse a coisa mais normal mundo. Fiquei mal por um bom tempo, pois eu nunca tinha conversado abertamente com um pedófilo. Até tentei ter um diálogo, não tive estômago para isso.
Você adota uma linguagem até certo ponto agressiva, nas palavras e nas imagens. A personagem usa facas ou senta sobre cabeças decapitadas de homens que, de algum modo, foram sexualmente agressivos com ela. Como educar com essa escolha de linguagem?
Porque sou uma mulher que desenha coisas agressivas.
Você acredita que esse mesmo tipo de estranhamento seja indagado a um ilustrador homem?
Com certeza não. Homens que desenham coisas agressivas existem aos montes. Basta ver os quadrinhos mais famosos e os vilões e heróis deles.
Lili, sua personagem que decapita pedófilos e feminicidas, é parte de uma série. Como se deu a reação a ela?
Ela faz parte de uma nova fase dos meus desenhos: a de HQs. Incorporo nelas minha personagem e uso minha experiência pessoal de forma implícita. A experiência do abuso faz com que ela se enxergue de forma distorcida, como um demônio, por isso os chifres que crescem nela. Há alguns dias, uma página conservadora pegou prints dos desenhos e fotos minhas e compartilhou como se eu fosse uma maluca, a “louca que odeia todos os homens”. A partir disso, comecei a receber ameaças de quem diz me seguir para queimar meus desenhos, de quem diz que vai me agredir e até ameaças de morte. Vários desses, majoritariamente homens, mas também mulheres, me disseram nessas mensagens ainda que, se se eu não desativar minha conta no Instagram e no Facebook, vão continuar me perseguindo.
Que medidas você tomou?
Providenciei print de tudo e encaminhei ao Ministério Público do Rio de Janeiro para que essas pessoas sejam investigadas. Tanto quem criou essas mensagens quanto quem as compartilhou será processado civil e criminalmente. Não posso deixar que essas pessoas tenham o que querem, que é me fazer ter medo o bastante a ponto de silenciar. Não há nada de errado com o que eu estou fazendo, mas com eles. Se eu finjo ignorar e não ajo, dou um pretexto a eles para continuarem a fazer isso com outras pessoas — ainda mais com outras artistas mulheres. Gostaria que eu fosse um homem criando os mesmos personagens matando pedófilos, feminicidas: eu não seria atacado, mas ovacionado por essas mesmas pessoas. Criadores de heróis e vilões que matam criminosos não estão sendo julgados: estão ricos.
Sua rotina foi afetada desde as ameaças?
Com certeza tenho mais medo de expor meus desenhos, medo da reação das pessoas. Medo, com certeza, se vou sair à rua, se vão aos lugares onde exponho meus desenhos. Veja o paradoxo: eu vivo da minha arte, preciso divulgá-la, mas tive que desativar perfis por alguns dias, e depois restringir a visibilidade deles, porque estava muito difícil. É terrível essa sensação de estar se escondendo. A quem interessa que eu não fale sobre essa violência contra a mulher?