Após ler em sala o poema O Pequeno Príncipe Preto, de Marcelo Serralva, para seus alunos da educação infantil, Luciana Deus, professora da rede pública, foi abordada com uma pergunta desconcertante, feita por um de seus alunos negros. “Mas, professora, existe príncipe preto?”.
“Foi uma pergunta simples, mas que levanta um grande debate sobre o racismo na nossa sociedade”, relata a pedagoga e pesquisadora, que se inspirou no episódio para escrever sua dissertação de mestrado ‘E existe príncipe preto, professora?’: narrativas orais de professoras sobre o racismo e o antirracismo nos currículos e práticas pedagógicas da educação infantil na cidade de São Paulo. A pesquisa, que é parte do programa Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, investigou as práticas pedagógicas antirracistas e o que está por trás da ausência de narrativas negras na escola.
“Nossa sociedade é extremamente racista, e o professor precisa compreender isso para trabalhar a educação antirracista”, explica Luciana, reforçando que, apesar de o currículo oficial incluir a cultura negra, poucos professores estão preparados para abordá-la em sala de aula devido a uma formação superior deficitária.
História oral
Para a pesquisa, Luciana entrevistou cinco professoras de ensino infantil de diferentes escolas da rede pública: duas brancas e três negras. Durante as conversas, a pesquisadora questionou as pedagogas sobre a infância, família, amigos e faculdade, e como o racismo se expressava em cada um desses âmbitos. “A gente não se torna professor quando recebemos um diploma; nós já vamos nos formando desde quando nascemos”, explica a pedagoga, que defende a importância de analisar toda a formação humana dos professores.
Orientada pela historiadora Marta Rovai, Luciana trabalhou as narrativas a partir da história oral, técnica de pesquisa que se baseia na coleta de depoimentos. “Eu aprendi muito com a história oral”, relata a pesquisadora, que conta ter exercitado uma escuta atenta, sensível e sem julgamentos.
Além das entrevistas, a pedagoga estudou teorias de autores decoloniais brasileiros e referências do exterior, como Lélia Gonzales, Franz Fanon, Neusa Santos Souza e Kabengele Munanga. “Munanga faz um raio-X muito interessante da escola”, conta, sobre o organizador do livro Superando o Racismo na Escola.
Currículo bom, falta de formação
Em janeiro de 2003, foi aprovada a Lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino. Apesar da lei, muitos professores ainda não praticam uma educação antirracista e não se aprofundam na história negra — apenas a trabalham em datas pontuais, como o Dia da Consciência Negra. Segundo Luciana, muitos professores sequer conhecem a lei.
“O currículo prevê que os professores estejam preparados para combater qualquer desigualdade, mas percebi que isso não é verdade”, conta Luciana, acrescentando que a educação eurocêntrica ainda está enraizada nas escolas.
A razão para o descaso é evidente para Luciana: “O erro começa lá na faculdade; existe uma lacuna na formação de pedagogos”. Nas entrevistas conduzidas pela pesquisadora, as professoras afirmam ter tido pouco contato com a educação antirracista na graduação. “Eu mesma não estudei nenhum escritor negro enquanto estava na faculdade de pedagogia”, denuncia Luciana.
A falta de referências bibliográficas e docentes negros instaura não só um desconhecimento, mas também medo de abordar o racismo — especialmente entre as professoras brancas, que relatam ter receio de errar. “Na minha pesquisa quis mostrar que não precisa ter medo de praticar a educação antirracista”, acrescenta Luciana. As professoras negras, por outro lado, relataram ter mais consciência da importância de uma educação antirracista, e a praticam frequentemente em sala de aula.
“A escola não acompanha os avanços da sociedade”, afirma Luciana, defendendo que a escola precisa mudar, e o caminho é a formação dos professores.
Práticas em sala de aula
“O brincar é universal; toda criança brinca”, comenta Luciana, que acredita ser possível introduzir a cultura negra às crianças por meio de atividades como jogo da memória com pessoas negras ilustres e brincadeiras africanas. Ao introduzir brincadeiras da África, Luciana conta sobre o país de origem e a cultura da região, e abre uma roda de conversa para que os alunos possam compartilhar suas impressões após a atividade.
Conheça algumas brincadeiras africanas:
Mocho
A famosa brincadeira de esconde-esconde tem diversas versões ao redor do mundo. Em Moçambique, ela geralmente é jogada no escuro e, enquanto no Brasil uma criança é responsável por procurar enquanto os colegas se escondem, a versão moçambicana funciona ao contrário: a criança escolhida para ser o mocho se esconde, enquanto as demais são encarregadas de procurá-la. A primeira pessoa a encontrar o mocho, em vez de denunciá-lo, se junta a ele no esconderijo — e o jogo continua, até todas as crianças se juntarem.
Mocho é a denominação para “coruja” em algumas regiões do país lusófono, uma alusão ao animal conhecido por sua visão noturna.
Meu querido bebê
Na brincadeira nigeriana, um jogador escolhido deve sair da sala, enquanto os demais escolhem um colega para ser o “bebê”. O “bebê” deita no chão e sua silhueta é desenhada pelos outros participantes. O jogador que saiu da sala deve, então, adivinhar de quem é o contorno desenhado. Se acertar, pontua e continua nas próximas rodadas; caso não acerte, outro entra em seu lugar. Vence quem conseguir mais pontos.
Mbube mbube
Mbube é uma palavra zulu que significa leão. Na brincadeira Mbube mbube, que tem origem em Gana, os participantes devem auxiliar o leão em sua caça. Dois dos jogadores são vendados, um deles assume o papel de leão e o outro de caça; os outros participantes fazem um círculo ao redor dos dois, enquanto alguém os gira e os afasta. O jogador que for o leão fica dentro do círculo e começa a perseguir quem for a caça e, quanto mais perto o leão se aproximar da caça, as crianças dentro do círculo cantam mais alto e mais rápido “Mbube, mbube“. Ao se afastar, cantam mais baixo e mais lento.