Atenção: esse texto pode conter alguns spoilers.
Por Jarid Arraes
As animações Disney foram e continuam a ser uma forte influência na infância de muita gente; as meninas, na maioria das vezes, são ensinadas a desejar a realeza inquestionável do “ser princesa”. Para além da quantia exorbitante de dinheiro movimentado em brinquedos e merchandise com os personagens dos desenhos e filmes, a Disney traz à tona questões pertinentes à subjetividade humana: padrões de beleza, estereótipos sexuais e a heterossexualidade compulsória estão presentes em todos os contos de fadas da Disney, que muitas vezes ensinaram às garotas que príncipes são necessários para que elas sejam salvas e tenham um final feliz.
Ultimamente, a Disney tem feito o que por muitas décadas se recusou a concretizar: a indústria tem criado personagens femininas fortes e que existem em tramas variadas, que não giram em torno de conseguir um homem. Pelo contrário, os mais recentes filmes, como Valente, Frozen e Malévola, mostram histórias em que amor verdadeiro existem entre mulheres, que não apenas mantêm relacionamentos únicos e profundos, mas ajudam e salvam umas às outras.
Há outros desenhos Disney que contam histórias de protagonistas femininas fortes e corajosas, como “Pocahontas”, que impede uma guerra, ou “Mulan”, que salva seu país de uma invasão. No entanto, seus relacionamentos ainda se constituíam entre pares românticos e figuras paternas; por muito tempo, a imagem da mãe foi colocada de lado, substituída por madrastas cruéis e invejosas. Essa corrente foi rompida com o lançamento de “Valente”, que além de contar com uma princesa quase totalmente fora dos padrões, apresentou um relacionamento entre mãe e filha como foco do enredo. Já em “Frozen”, a narrativa emocionante gira em torno da amizade de duas irmãs, surpreendendo com uma das maiores quebras de paradigmas dos contos de fadas: o ato de amor verdadeiro para o fechamento da trama não era o beijo de nenhum dos galãs, mas sim a coragem de uma irmã se arriscar pela outra.
Em “Malévola”, mais recente estreia da Disney, muita coisa é desconstruída: a clássica vilã é transformada em uma personagem multidimensional, complexa e com uma história profundamente tocante. Violentada e traída pelo homem que amava, Malévola encontra em outra figura feminina a descoberta do amor verdadeiro e a sua redenção. Assim como em “Frozen”, o príncipe é deixado para o final, como uma espécie de complemento para que o desfecho seja feliz em todos os aspectos, mas certamente há muito para ser apontado como avanço.
Para aqueles que consideram frívolos os debates sobre filmes Disney, a pertinência dos contos de fadas na formação subjetiva de meninas e meninos já foi investigada em diversos livros e pesquisas acadêmicas, expondo a criação e manutenção de padrões e costumes sociais. A representatividade é importante; é por isso que a Disney, que se mantém como a mais importante companhia de entretenimento infantojuvenil, ainda tem um longo caminho pela frente. “Valente”, “Frozen” e “Malévola” continuam trazendo exclusivamente mulheres brancas e magras como heroínas. Ao considerarmos então a questão da inclusão de personagens com deficiência, o quadro fica bem pessimista. Isso tudo influencia a autoestima de milhares de crianças, que são expostas aos contos da Disney desde a mais tenra idade, mas não se encaixam nesses padrões e não se enxergam nos enredos.
Apesar de tudo, é revigorante saber que já estão disponíveis obras de ficção da Disney que dialogam melhor com as realidades das meninas, mostrando relacionamentos cheios de sentimentos entre mães e filhas, irmãs e amigas e provando que mulheres podem e devem contar umas com as outras. Mulheres também podem ser fortes, guerreiras e capazes de enfrentar monstros – tanto os fictícios quanto os simbólicos, como relacionamentos abusivos e crises existenciais.
É importante lembrar que esse tipo de mudança também é extremamente positiva para garotos e homens. Enxergar mulheres como seres humanos independentes e dotados de força auxilia uma formação menos machista e dominadora, que também abrirá espaço para que esses homens escapem dos rígidos padrões de masculinidade. E, ao contrário do que pensam os misóginos, muita gente quer blockbusters com mulheres protagonistas. O sucesso estrondoso de bilheteria de “Malévola” e “Frozen” não mente: existe uma grande audiência interessada em vilãs complexas, que roubam a simpatia do público, e mocinhas autônomas e habilidosas. Afinal, muitas mulheres reais são assim.
Fonte: Revista Fórum