Mercado de Trabalho – 13 de Maio: data para refletir

O que as empresas que atuam no Brasil podem aprender com a cultura afro-brasileira a respeito do 13 de Maio e das desigualdades raciais no país?

Por Pedro Jaime*

Lembro que, quando eu era criança, nos anos 1980, havia na Bahia uma música que era cantada frequentemente nas rodas de capoeira. A letra dizia o seguinte:

Salve, salve, salve a princesa Isabel no mundo inteiro!
Com a pena e o papel acabou com o cativeiro.

Como se pode notar, falava-se da abolição do sistema colonial escravista no Brasil exaltando a figura da princesa Isabel. Neste início de século 21, o movimento negro, acumulando forças das lutas antirracistas anteriores, alcançou uma posição sólida na sociedade brasileira, com resultados concretos, ainda que incompletos, tanto no que diz respeito aos processos de redistribuição de riquezas, visando à eliminação das desigualdades raciais, quanto no que se refere à disputa por reconhecimento da identidade negra, ambos com impactos significativos na autoestima da população afro-brasileira.

Como parte da sua estratégia política, esse movimento reivindicou desde os anos 1970 uma alteração no marco simbólico relativo ao fim do sistema colonial escravista. O 20 de Novembro passou a ser, da perspectiva desse movimento, a data a ser celebrada. Dia do assassinato, com requintes de crueldade, de Zumbi, principal líder do Quilombo dos Palmares, reforçar essa data é ressaltar o protagonismo dos negros na conquista da sua liberdade. A estratégia deu resultados. Em seu mandato, o então presidente Fernando Henrique Cardoso inseriu o nome de Zumbi no Panteão dos Heróis da Pátria e, em várias cidades brasileiras, 20 de novembro passou a ser feriado municipal, o Dia da Consciência Negra.

A música citada acima passou a ser cada vez menos ouvida nas rodas de capoeira. Em seu lugar, vieram outras mensagens, que refletem a translação do eixo discursivo referente ao fim do sistema colonial escravista. Uma delas, chama a minha atenção pela sua força poética. A letra diz:

Dona Isabel, que história é essa de ter feito a abolição?
De ser princesa boazinha, que libertou a escravidão?
Eu tô cansado de conversa, eu tô cansado de ilusão.

Abolição se fez com sangue, que inundava este país;
que o negro transformou em luta, cansado de ser infeliz.
Abolição se fez bem antes, e ainda há por se fazer agora.
Com a verdade da favela, não com a mentira da escola.

Dona Isabel, chegou a hora de acabar com essa maldade;
e de ensinar pros nossos filhos o quanto custa a liberdade.
Viva Zumbi, nosso rei negro, que fez-se herói lá em Palmares.
Viva a cultura desse povo, a liberdade verdadeira,
que já corria nos quilombos, que já jogava capoeira
!

Outra também me vem sempre à memória, pelo seu poder de síntese:

Viva o 20 de Novembro, data para se louvar;
ao invés, 13 de Maio, nada pra comemorar.

O que essa história, extraída da cultura afro-brasileira, pode ensinar ao mundo empresarial? Para responder a essa pergunta, é preciso acrescentar que, embora o movimento negro tenha reivindicado o deslocamento do marco simbólico da abolição do sistema colonial escravista no Brasil do 13 de Maio para o 20 de Novembro, ele não desprezou o marco anterior. O 13 de Maio se manteve no discurso desse movimento como uma data não para comemorar, mas para refletir. Refletir sobre as desigualdades raciais ainda existentes no Brasil.

Tenho publicado nesse site textos que visam dar subsídios para que as lideranças empresariais e os(as) gestores(as) organizacionais reflitam sobre essas desigualdades. No artigo “A persistência das desigualdades raciais no mundo empresarial”, mostrei que, segundo o boletim Os Negros no Trabalho, produzido pelo Dieese, pela Fundação Seade e pelo Ministério do Trabalho, na média do Distrito Federal e das regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo, a remuneração por hora dos negros é equivalente a 63,9% do ganho-hora dos não negros.

Já no artigo “Desigualdades raciais e de gênero e ações afirmativas no Brasil”, evidenciei que, de acordo com a Retrospectiva da Pesquisa Mensal de Emprego 2003 a 2013, balanço realizado pelo IBGE, tomando-se como referência o ano de 2013 e basicamente as mesmas localidades, a média anual do rendimento dos trabalhadores de cor preta ou parda (R$ 1.374,79) continua sendo inferior à dos trabalhadores de cor branca (R$ 2.396,74). Ou seja, os negros ganham 57,4% do salário recebido pelos brancos.

Por fim, no artigo “Executivos negros e movimento antirracista no Brasil”, argumentei que uma comparação com os Estados Unidos quanto à presença de executivos negros nas maiores empresas que atuam no país é amplamente desfavorável ao Brasil. Lá, numa população composta por 12,6% de negros, 9,4% dos executivos das 100 maiores companhias são afrodescendentes, segundo dados do relatório The Executive Leadership Council. No Brasil, o último Censo do IBGE, realizado em 2010, revelou que 50,7% da população é composta por negros (7,6% de pretos e 43,1% de pardos). Levando-se em conta essa realidade, para termos uma representação de negros no mundo empresarial mais próxima daquela encontrada nos EUA deveríamos contar com 37,8% de afrodescendentes nos postos direção das maiores empresas que operam no país, um percentual sete vezes superior aos atuais 5,3% constatados na última pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas, realizada pelo Instituto Ethos em 2010.

Tais informações mostram inequivocamente que raça ainda é um atributo que explica as desigualdades socioeconômicas no Brasil. Sugeri que isso levou os cientistas sociais que investigam nossa sociedade a deslocar o eixo central das pesquisas e debates sobre a questão racial no país da existência ou não do preconceito racial para a persistência das desigualdades raciais. Trata-se de responder à seguinte pergunta: por que razão um país que não presenciou o racismo como política de Estado (e esta não é uma assertiva isenta de controvérsia) produziu desigualdades nas áreas de educação, saúde, habitação e trabalho entre negros e brancos equivalentes a países como os Estados Unidos e a África do Sul, que viveram o regime de segregação racial e o sistema de apartheid? E, juntamente com ela, outra: como eliminar essas desigualdades no caso brasileiro? (Ver Pedro-Jaime-IIhttp://www3.ethos.org.br/cedoc/a-persistencia-das-desigualdades-raciais-no-mundo-empresarial/.)

Sim, temos feito progressos, como também tentei demonstrar recorrendo a um comunicado sobre uma visita oficial ao Brasil feito no final de 2013 pelo Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentes. Nesse comunicado, os especialistas da ONU sinalizam para o conjunto de iniciativas e políticas públicas de promoção da igualdade racial implementado pelo Estado brasileiro nos últimos dez anos, cuja face mais visível refere-se às ações afirmativas (ver http://www3.ethos.org.br/cedoc/desigualdades-raciais-e-de-genero-e-acoes-afirmativas-no-brasil/).

Cabe interrogar então: e quanto às iniciativas do mundo empresarial? O que as empresas têm feito para reduzir as desigualdades raciais no Brasil? Infelizmente é forçoso afirmar que não muita coisa. De acordo com a última edição do Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil, aludido acima, apenas 3% dessas companhias disseram possuir políticas com metas e ações planejadas para incentivar a participação de negros nos níveis de direção. Esse percentual sobe discretamente para 4% quanto ao nível gerencial. Segundo o mesmo documento, algumas empresas reconheceram que se limitam a desenvolver ações pontuais específicas para incentivar a participação de negros na organização. O percentual daquelas que disseram agir dessa maneira quanto aos cargos executivos é de 25%, com um acréscimo de dois pontos percentuais para os cargos de gerência. Ademais, a mesma pesquisa revela que 72% das empresas admitiram não adotar medidas para incentivar a participação de negros no nível executivo e 69% fizeram o mesmo no caso dos postos gerenciais. Sendo assim, o Instituto Ethos afirma no documento que “a iniciativa das corporações em relação à participação dos negros parece ter, portanto, efeito bem limitado sobre o aumento, de 2007 para 2010, de sua presença em quase todos os níveis hierárquicos”.

Esses dados são corroborados pela percepção de profissionais que ajudam as corporações a desenhar e implementar iniciativas de diversidade. Por ocasião da pesquisa de campo que empreendi para a realização da minha tese de doutorado sobre executivos negros, defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, tive a oportunidade de conversar com alguns consultores que trabalham nessa área. Todos apontaram que, no Brasil, as organizações ainda não estabeleceram conexões claras entre a diversidade, com ênfase na questão racial, e as estratégias de negócio. Um deles afirmou que aconselha os gestores a levar em consideração a diversidade no momento de tomar decisões, sejam aquelas referentes às equipes de trabalho, sejam as relativas a produtos ou fornecedores. Todavia, acredita que seus conselhos ainda não são colocados em prática. “Não vejo as empresas falarem assim: ‘Operamos no Brasil, onde os negros representam quase 50% da população; portanto, temos de incorporar a diversidade racial em nossas estratégias’. Talvez seja uma tendência para o futuro”, ponderou.

A posição de outra vai nessa mesma direção. Ela considera que as companhias que atuam no país estão muito distantes de incorporar a gestão da diversidade em todo o seu potencial: “A gente ainda está discutindo se somos ou não racistas, se existem ou não desigualdades raciais, se vamos criar programas específicos para negros. Este tem sido o tom da conversa no mundo empresarial brasileiro”.

A visão de uma terceira não destoa das demais. “As empresas colocam alguém para coordenar as iniciativas de diversidade, mas não existe cargo, nem programa, nem plano de ação, muito menos avaliação dos resultados”, pontuou.

O que dizer sobre tudo isso? Deixo aqui uma provocação: talvez as empresas que operam no Brasil precisem aprender com a cultura afro-brasileira. Se, como falam as canções mais recentes ouvidas nas rodas de capoeira, ainda não temos nada para comemorar no dia 13 de maio, ou muito pouco, precisamos tomar essa data como momento para refletir. Quem sabe o aprofundamento da reflexão leve as lideranças empresariais e os gestores organizacionais à ação e então eles/elas, assim como a sociedade brasileira em seu conjunto, tenham no futuro algo para louvar no dia 20 de novembro!

Pedro Jaime é professor da ESPM-SP e pesquisador de temas relacionados à questão racial, gênero e diversidade no mundo empresarial.

14/5/2014

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