Monólogo ‘Cuidado com Neguim’ expõe visão crítica do asfalto pelo negro favelado

Na peça, Kelson Succi reivindica a cidade para além do morro

por Hugo Limarque no O Globo

João Julio Mello

Trabalhando com teatro há seis anos, o ator Kelson Succi certamente já fez e viu muita coisa nos palcos — embora toda essa rodagem não tenha sido, necessariamente, garantia de orgulho pessoal. E o descontentamento não precisa ser profissional, porque a questão está muito mais ligada à cor de sua pele. Negro, ele diz que serviu muitas vezes para o elenco de apoio, e quando tinha visibilidade, era para assumir papéis que, em seu ponto de vista, reforçavam estereótipos. Cansado da “dramaturgia branca e racista”, manifestou o desejo de viver coisas novas por meio do monólogo “Cuidado com neguin”, que estreia quinta-feira, na Casa Rio, e cujo texto, direção e performance estão a cargo de Succi.

Baseado nas andanças e experiências do ator pela cidade, o espetáculo mostra um pouco da visão crítica e artística de “Neguin”, um personagem jovem, negro, pobre e favelado que sai do morro para encarar diariamente o asfalto. Mas a identidade de “Neguin” não é única: ele é a pessoa de Kelson e a de muitos outros indivíduos que se encaixam nesse perfil e passam o dia fora de suas comunidades — no caso do ator, seu ponto de partida e chegada é o Complexo do Alemão, localizado na Zona Norte. Se arriscando como dramaturgo pela primeira vez, ele usa a peça com o objetivo de denunciar abusos e mostrar a beleza desses espaços marginalizados.

Succi montou espetáculo para fugir de papéis pequenos e estereotipados – Divulgação/Caroline Martins

— Enquanto estou na favela, sou só mais um “neguin”, e isso definitivamente não é um problema. A coisa fica diferente quando eu e os outros saímos de lá para ocupar a cidade. Eu me percebi como negro nesse contexto, durante a adolescência, quando já trabalhava com teatro e fui discriminado em um restaurante na Gávea. Na peça, levo minhas observações da rua para o palco, seja por meio da minha experiência ou por aquilo que penso das pessoas que não vivem a minha realidade — conta o ator, que já teve passagens pela escola de arte e tecnologia Spectaculu, no Centro, e pelo Tablado. — Minha fala parte muito dos gestos e mensagens que me afetam no dia a dia, que não necessariamente configuram discriminação direta. Vivemos um racismo “descaradamente velado”. Só que a cidade que encaro todos os dias também é minha, ela é de todos.

No monólogo, Kelson atua, dirige e assina o texto – Divulgação/Priscilla Martinho/BERRO

A bilheteria de “Cuidado com neguin” é voluntária, sendo permitido contribuir com o quanto quiser. A facilidade, de acordo com Succi, é oferecer um meio de acesso democrático ao espetáculo, que também deve garantir o diálogo entre moradores de todas as regiões. Mesmo assim, ele diz que ainda existem impedimentos para se chegar ao teatro, e por isso decidiu expandir os horizontes da peça. A solução foi confeccionar vídeos e textos com performances inéditas, distintas do monólogo, que estarão disponíveis nas redes sociais.

O ator, porém, quer mais. O espetáculo é estruturado em 12 performances independentes, que podem ser aproveitados em separado para uso em outros espaços. Succi, portanto, se vale de tudo o que pode para levar o “neguin” adiante.

“CUIDADO COM NEGUIN”

Casa Rio — Rua São João Batista 105, em Botafogo. Telefone: 2148-6999. Quinta e sexta, às 20h30m. Em cartaz até dia 24 de agosto.

Ingresso: contribuição voluntária.

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