Muçulmana vira guitarrista de banda de heavy metal em São Paulo

Enviado por / FontePor Giovana Sanchez, do G1

“Isso é muito confortável, nunca mais na vida vou usar calça!”, diz Gisele Marie Rocha ao mostrar com os braços abertos a largura de seu niqab, “vestido” muçulmano que deixa apenas os olhos aparecendo. “Eu coloco a bolsa aqui dentro e o ladrão nem vê”, brinca a paulistana de 42 anos, enquanto ajeita as partes do véu. Gisele diz que se encontrou no Islã, religião para a qual se converteu em 2009. Mas, muito antes disso, outra paixão a arrebatou: o heavy metal.

“Minha família inteira toca, nasci cercada de instrumentos. Comecei a estudar música no conservatório, com o piano clássico, e toco também bateria. O heavy metal surgiu quando meus irmãos e primos começaram a ouvir”, conta Gisele.

No ano passado, ela foi convidada por amigos para ser guitarrista de uma banda de rock pesado – uma nova composição da antiga Spectrus, formada por seus irmãos na década de 1980 e que terminou em 2001. “Quando me convidaram eu disse: ‘tudo bem, mas minha condição para qualquer coisa na vida é ser muçulmana. E uma munaqaba [mulher que veste o niqab]. Vou tocar assim’. E eles gostaram da ideia. […] A banda é um caldo de religiões: tem umbandista, espírita, católico e muçulmana.”

Agora Gisele levou a atividade para o lado profissional – antes ela chegou a trabalhar como musicista, em estúdio, e com promoção de eventos e marketing, mas ainda não era muçulmana. Após a conversão, ela foi estagiária de psicologia. “Foi sempre super tranquilo, nunca tive muito problemas com isto, mas depois, quando eu entrei para a banda, estava procurando emprego e não encontrei. Preconceito religioso no mercado de trabalho é algo que toda mulher muçulmana enfrenta no Brasil, mesmo as que usam apenas o véu de cabeça, o hijab.”

Atualmente ela ensaia seis horas por dia para a gravação do CD, com previsão de lançamento para setembro. “Tem irmãs [muçulmanas] que vão aos ensaios, inclusive um sheik egípcio me pediu para avisar quando tiver show”, conta ela sobre a reação da comunidade muçulmana à sua nova profissão.

“Em todo ajuntamento humano sempre existem os extremistas, pessoas fanáticas. No Islã há os wahabistas e salafistas e eles me detestam. […] Para eles, até sorrir é pecado. Não há um consenso sobre a música dentro do Islã, e quando não há consenso, você segue o que tem a ver com você. Existem aqueles que dizem que música é pecado e existem aqueles que dizem que pecado é dizer que música é pecado. Eu sigo a orientação de que música é uma coisa natural, faz parte da minha vida e não é pecado.”

Da bruxaria para o Islã

“A primeira vez que minha mãe me olhou vestida assim ela disse: ‘você está muito bonita!'”. Gisele conta que a família, de advogados descendentes de alemães católicos, apoiou sua conversão. “Na verdade minha mãe não gostava da minha religião anterior. Eu era uma bruxa.”

Gisele foi da religião Wicca por seis anos. “Na verdade, o que me move [na busca religiosa] é a paixão pela vida e a necessidade de ser eu mesma”. Após perder o pai, de quem era muito próxima, em 2009, ela encontrou um site que ensinava árabe. “Em dois meses eu comecei a ler em árabe. Aí achei um site que disponibilizava o Alcorão na íntegra. Comecei a ler e o resultado está aqui. Mudou a minha vida, nunca tinha lido nada tão simples e profundo.”

Dois meses depois de se converter, ela começou a usar o niqab. “Foi uma decisão muito consciente, muito pensada. Comecei porque estava ajudando uma amiga que tinha acabado de voltar do Egito e queria usar o niqab, mas estava tímida. Como eu estudei psicologia, me propus a ajudá-la a vencer o medo. Começamos a fazer pequenos passeios pelas redondezas [ela mora no bairro de Santana] e eu comecei a me sentir muito bem.”

Gisele explica que, para ela, o niqab representa uma lembrança constante de Alá (Deus muçulmano). “É uma marca muito específica de que eu sou uma mulher religiosa. E me fez ser um pouco mais reflexiva, exigiu de mim uma maior compreensão ao meu redor. É um exercício de diálogo com o mundo.”

A primeira coisa que fez quando decidiu usar o niqab foi contar para as quatro filhas que tem. “Elas sempre são as primeiras a saber da minha vida”. Gisele é solteira pela lei brasileira, mas foi casada, pela lei islâmica, com um libanês que tinha, além dela, outra mulher.

Gisele conta que aprendeu a se expressar apenas com os seus grandes olhos verdes. Ela diz que já sofreu preconceito (uma vez um homem puxou seu véu e ela chamou a polícia), mas que há uma curiosidade muito grande e positiva em relação à religião. “Não consigo ficar na rua sem falar com alguém. É muito raro eu sair de casa e nenhuma pessoa me parar para falar ou tirar foto. Eu passei da linha do preconceito e virei atração turística.”

Segundo ela, a primeira vez que a banda foi ensaiar num estúdio, pessoas começaram a entrar na sala e tirar fotos. “Fiquei muito assustada com aquilo”. Mas Gisele diz que tocar de niqab é normal. “Estou tão acostumada a usar que acho que hoje faço até alpinismo usando o niqab e não vou nem reparar. A grande diferença está no olhar da outra pessoa.”

Polka: uma guitarra especial

Gisele tem ao todo quatro guitarras, compradas ao longo da vida. Mas uma delas é preferida. Preta de bolinhas rosa, a flying V chamada Polka foi confeccionada exclusivamente para ela. “Foi inspirada na guitarra do meu guitarrista preferido, Randy Rhoads [que já tocou com Ozzy Osbourne e Quiet Riot]. Ele tinha uma preta com bolinhas brancas”.

Polka tem o corpo e o braço feitos em mogno, a escala de jacarandá e marcações da escala em “gravatinhas borboleta fofas de madrepérola”. É com ela que Gisele vai subir ao palco para tocar com a Spectrus. “Não vejo a hora de ver as pessoas enlouquecerem com a nossa música.”

 

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