Quem são os negros da escola do teu filho? Coletivos de pais dos colégios Vera Cruz, Equipe, Santa Cruz, Oswald de Andrade, São Domingos, Alecrim e Instituto Singularidades têm repetido a pergunta insistentemente dentro das instituições. Aos pais e famílias que as frequentam e às equipes docentes. Um movimento que nasceu tamanha a discrepância da bolha social em que os filhos vivem somada a consciência de que é preciso fazer parte do movimento antirracismo ao lado dos negros.
Quase que em sua totalidade, negros, na na vida particular dessas crianças e adolescentes, costumam ser os empregados: faxineiros, domésticas, babás, auxiliares. Uma questão que vai muito além do que é tradicionalmente chamado de racismo. É o racismo estrutural que está enraizado na sociedade de forma basilar. Em que os negros, em suas diferentes posições, garantem o alicerce dos brancos. E a fala não tem exagero. Basta olhar ao redor.
Qual escola particular você conhece em que o diretor, ou diretora, é negro? Qual escola particular você conhece em que parte considerável do quadro de professores é negro? Qual escola particular você conhece em que parte considerável dos alunos sejam negros? Se a resposta foi nenhuma, ou quase nenhuma, por favor, continue a ler esta matéria.
As perguntas são repetidas propositalmente na tentativa forçada de, ao menos, incomodar. “Se os negros não frequentam nossas escolas particulares, nem mesmo as ‘progressistas’, nem como alunos, nem como professores, podemos buscar qualquer outro nome pra isso, mas o único verdadeiro é esse aqui: racismo e sem matizes”, fala Caio Maia, jornalista, pai de 3 meninas.
“Sou um homem branco e parte da elite que criou e sustenta nosso racismo estrutural. Há alguns anos, morei nos EUA, um país que nem os americanos negam ser racista. O que me chamou a atenção dessa experiência é que lá ser racista é uma opção. Minhas filhas estudaram em escolas particulares em que entre 25% e 66% da turma era formada por negros – no Brasil, nenhuma delas tem nenhum colega negro na escola. Na Universidade que estudei o reitor é negro. Há numerosos professores negros, numerosos alunos negros. Há no país, que é profundamente racista, numerosas lideranças empresariais, intelectuais e políticas que são negras. No Brasil, contamos nos dedos ,não só os negros em posição de liderança, como os que encontramos no nosso dia a dia na academia, parques, restaurantes e lojas”.
Recentemente, ativistas negros postaram no Instagram que os brancos tinham descoberto os negros. Diria que os brancos se uniram aos negros. E ainda que não seja suficiente todo este movimento, ele é um começo e não tem outra forma de começar não seja pela ponta do fio. Não é uma pauta fácil, nem simples. Longe disso. Seria ingênuo acreditar que é pacífica na elite brasileira. Não é e talvez nem seja majoritária. Mas a violência e a brutalidade contra os negros não são esporádicas, não são episódicas, elas são diárias. E se a sociedade não estiver pronta pra mexer neste lugar do cotidiano, não vão existir mudanças.
E o campo da educação não poderia ser mais propício, uma vez que temos ali, a experiência contida do que significa viver em sociedade. As escolas de pensamento mais moderno e construtivista carregam em seu discurso a formação do cidadão pronto pra atuar no mundo plural e diverso. É preciso que, de fato, as escolas efetivem seus discursos. “Do contrário, seguiremos perpetuando o racismo estrutural em que estamos presos há séculos – uma estrutura injusta da qual apenas os brancos se aproveitam. E a escola, que é a base da formação, tem de ser um importante agente dessa transformação”, fala Cássio França, cientista político, pai e integrante do coletivo do Colégio Oswald de Andrade, formado em 2018.
“Saber que nossos filhos vivem numa ‘bolha’ social cada vez mais fechada, que não reflete a população brasileira e só reforça as enormes desigualdades do país. Por razões históricas, as famílias compactuaram com essa dinâmica, mas não queremos que siga sendo dessa forma, queremos que a formação cidadã que o Oswald fornece aos nossos filhos seja também antirracista e representativa de nosso país multirracial.”
Caio Maia, que é um dos fundadores do grupo Escola Antirracista, reforça a fala. “Não se muda essa situação com discursos bonitos e cartas de solidariedade. Não se muda nada sem ceder protagonismo, sem acreditar verdadeiramente que não faz sentido que os lugares de poder e decisão sejam ocupados só por brancos, sem se mexer para que isso seja radicalmente alterado. Não cabe aos brancos dirigir a luta, mas sim se tornar parte, lutar ao lado, ser a ponta de lança quando necessário e adequado, fazer a nossa própria parte: avançar a luta antirracista nas escolas particulares”.
E avançar na luta exige participação de todos. Escolas e famílias precisam caminhar juntas na direção de instituições e sociedade mais equânime. Ainda que se inicie e desenvolva dentro dos muros das escolas, é preciso ganhar mundo, como fazem os filhos. “É fato também que as instituições são formadas por pessoas. Nesse sentido, a direção de uma escola particular representa o pensamento majoritário das famílias que matriculam suas crianças ali. Daí a importância de contar com o apoio das famílias”, fala Cássio, do coletivo Oswald.
“É fundamental consolidar uma comunidade antirracista para mudar a postura da escola. O fato de o racismo ser estrutural não isenta os indivíduos de responsabilidade. O trabalho é de fora para dentro e de dentro para fora, ao mesmo tempo. Se as famílias se posicionarem, as mudanças estruturais serão mais rápidas. Se a direção assumir esse compromisso, mais famílias e alunos vão compreender a importância do tema e a necessidade de enfrentar essa questão”, pontua.
A diversidade racial não é uma questão teórica, ela é real. Segundo dados do IBGE, nos últimos sete anos houve um aumento de 32% da população que se declara parda ou negra. O que significa que hoje, em 2020, dos 211 milhões de brasileiros, 56,10% são negros e pardos. A razão do IBGE para este possível aumento nas declarações é o reforço das políticas afirmativas de cor e raça. “Se o crescimento é baseado nas políticas afirmativas de cor e raça, vai depender da continuidade dessas políticas. Cria-se uma cultura nas pessoas que foram atingidas pelas referidas políticas e estas repassam o posicionamento delas em relação à própria cor para as demais pessoas”, declarou Adriana Beringuy, analista do IBGE, em entrevista recente ao G1.
A disparidade entre o povo brasileiro e o ambiente escolar salta aos olhos. “Faz com que desejemos ver a população brasileira representada de forma mais real nos corredores da nossa escola”, fala Tatiana Gomes Nascimento, publicitária e mãe de 2 criancas, integrante do coletivo da Escola Vera Cruz. “Nós – membros da frente de diversidade racial ligada à Organização de Pais Solidários (criada por famílias brancas, em sua maioria, e pretas na sua ínfima minoria) – implicados com o projeto pedagógico da Escola Vera Cruz, continuamos questionando nosso papel diante da realidade que vivemos, e extraindo as ações com as quais precisamos nos comprometer para um transformação desta realidade”.
E quais são os movimentos dessa transformação? Como encaminhar essa conversa junto a gestão das escolas? Juliana de Paula Costa, pedagoga com especialização em educação para as relações étnico raciais e cultura afro-brasileira e co-fundadora do projeto em Educação Antirracista Pisar Nesse Chão Devagarinho, além de assessora em Educação Antirracista da Escola Alecrim, é quem nos traz algumas respostas.
Filha de uma mulher negra retinta e de um pai branco, espanhol, cresceu e estudou em escolas particulares onde sofria, frequentemente, o racismo. Muitas vezes chamada de “macaquinha” e “filha da empregada que seduziu o patrão”, Juliana cresceu e foi buscar força na própria educação. Adulta, mãe de um menino e professora de uma escola particular, viu a realidade se repetir dentro do corpo docente da escola, mas viu na sala de aula uma possibilidade de mudança. “Era uma sala atípica dentro do contexto: de 18 alunos, 4 eram negros. Passei a buscar atividades para equilibrar o conteúdo para que fossem representativos da realidade”.
Ali estava o embrião do que viria a ser o “Pisar Nesse Chão Devagarinho”: afrocentrar a educação na busca de promover equidade nas relações escolares e fomentar a aplicação da lei 11.645/08 nas escolas. Conquista dos movimentos negros, a lei é fundamental para a educação antirracista.
“Nas escolas particulares, o trabalho de educação antirracista não pode limitar-se a pensar em cotas. Não é apenas sobre trazer crianças negras para dentro. Isso não resolve a questão e pode colocar crianças negras em um espaço violento, que marcará suas subjetividades de modo negativo. É sobre rever o que é esse ‘dentro’: quais lógicas operam na escola? Há pessoas qualificadas para acolher e mediar situações que envolvem racismo? O currículo é permeado de forma positiva e fluida pelas produções de pessoas negras? Há protocolo para mediação de conflito e cuidado quando um profissional negro ou aluno sofre racismo?”.
As perguntas que Juliana faz são norteadoras para guiar o trabalho dos coletivos das escolas, assim como ajudar a gestão das escolas a pensar para além dos alunos negros em sala de aula. “Se estamos falando de espaços de maioria branca, deve haver comprometimento com a redistribuição de cargos de poder. É urgente ampliar a representatividade nesses cargos, bem como o engajamento das pessoas brancas que compõem a instituição a formarem-se sobre sua própria constituição racial”.
E é neste caminho que as propostas seguem entre conversas e estreitamento de planos e encaminhamentos. Na Escola Vera Cruz, o coletivo de pais organizou cinco frentes das quais julgam ser importantes trabalhar. Entre elas, sensibilização da comunidade, promoção da diversidade do corpo docente e discente, reformulação do currículo escolar e criação de um fórum Inter-escolas que já está em formação.
O anseio é ver, entre alunos, professores, direção e funcionários, uma diversidade racial mais próxima da realidade brasileira. “E já sabemos que, para chegar lá, é preciso envolver ONGs especializadas na promoção da equidade racial, revisar o Projeto Político Pedagógico da escola, fazendo adaptações no currículo e no próprio espaço físico da escola, ampliar a formação e o letramento da comunidade escolar (o que inclui até suporte psicológico ao longo do processo) e pensar em políticas afirmativas, amplifica Cássio.
É uma transformação e tanto. Uma grande transformação. Com metas e objetivos muito claros. Com famílias e escolas comprometidas. Um movimento de processo contínuo apenas começando.