Não parem de trabalhar!!!

No dia 14 de agosto deste ano um homem morreu durante o trabalho numa rede multinacional de hipermercados. A morte ocorreu por volta das 8h da manhã, o corpo foi ocultado por guarda-sóis e tapumes até ser recolhido pelo Instituto Médico Legal em torno das 12h enquanto a loja permaneceu aberta ao público. Em tempos de pandemia, este caso parece ser apenas mais uma gota no acúmulo de catástrofes. Olhamos, perplexos e impotentes, insensíveis talvez, o encadeamento de tragédias: uma criança morta ao cair do 9° andar enquanto a mãe cuidava do pet da patroa, a empregada doméstica morta depois de contrair o coronavírus na casa em que prestava serviço; as mortes por Covid-19, por seu turno, já ultrapassam o número de 131 mil, mas parece que não são mais do que partes inevitáveis de paisagem social em que a produtividade, em vez servir, se tornou mais importante que a vida.

O caos pandêmico, porém, não trouxe novidade em termos de organização social, política e econômica. Apenas tornou mais evidente como a ordem social contemporânea se constitui. Os casos enumerados são poderosos em mostrar que temos uma sociedade profundamente cunhada numa ideologia da produção como dever moral imperioso do qual quase ninguém pode se eximir. Ela esconde uma contradição estrutural e decisiva: aqueles que consomem suas vidas trabalhando não são os que ficam com os frutos do seu suor. Os dados mais atuais mostram que 99% da riqueza mundial está em posse de apenas 1% da população e que os mais ricos ficaram ainda mais ricos durante a pandemia.

Ainda no início da crise sanitária foi lançada uma a campanha com o slogan o “Brasil não pode parar” e criou-se uma dicotomia entre aqueles que “defendiam a vida” e os que “defendiam a economia”. A despeito do esforço de muitos prefeitos e governadores, o cabo de guerra pouco a pouco foi se deslocando para os partidários da “economia”. As prescrições médicas foram gradualmente sendo relativizadas, o isolamento social minado e a população encorajada a enfrentar a Covid-19, equiparada a uma chuva que molha, mas não mata. Contanto que não paremos de produzir, porém, ao mesmo tempo se condescendia: “tudo bem que alguns morram já que tem gente morrendo todo dia mesmo”.

“Continuem a trabalhar” se tornou uma espécie de mantra. Motoboys, empregadas domésticas, trabalhadores do comércio, de restaurantes, da indústria, jogadores de futebol, todos são cobrados a ensandecidamente seguirem. Os que receberam o benefício do trabalho remoto, por sua vez, não se viram menos pressionados a altas taxas de rendimento. Grandes empresários e o próprio governo já fazem as contas do quanto vão economizar se não oferecerem mais ambiente de trabalho, vale de transporte e tudo mais que é preciso para reunir trabalhadores em um escritório.

No âmbito da educação, professores são cobrados a transformarem seus lares em verdadeiros estúdios digitais: devem produzir materiais didáticos, fazerem pesquisas, darem aulas e palestras, aplicarem avaliações, distribuírem conceitos de acordo com o suposto rendimento dos estudantes. Estes, por sua vez, não podem parar de estudar. Não importa se têm um irmão menor ou um avô que precisa de atenção; se a família não possui internet, computador, ambiente apropriado para o estudo, condições financeiras; tampouco se quer saber se ali há saúde física ou mental, contanto que não parem de produzir.

Ao observar todas essas situações, damo-nos conta do tipo de estrutura econômica, ideológica e moral que domina as relações sociais. Nota-se uma perversa inversão: em vez de o trabalho servir à vida, a vida que passa a servir ao trabalho.  Para que se possa manter o atual regime de produção e consequentemente a imensa concentração de riqueza que caracteriza o mundo atual, pessoas precisam ser estimuladas, convencidas e coagidas a trabalharem sem parar até morrerem. E por que aceitamos essa situação se, talvez, semelhante ao trabalhador do hipermercado, nosso destino seja também uma morte incômoda que não faz mais que atrapalhar a continuidade da produção?

JOSIMAR PRIORI é Cientista Social, Doutor em Sociologia, professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e autor de A luta faz a lei (Maringá, Eduem, 2017). A versão original deste texto foi publicada no Jornal Noroeste, 15/09/2020.

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