Negras na política: trajetória que levou Erica Malunguinho começou nos anos 1930

Em sua estreia como colunista de Marie Claire, a produtora cultural Isis Vergílio relembra a trajetória das mulheres negras na política, começando por Antonieta de Barros, deputada eleita nos anos 1930, passando por Lélia Gonzales, Benedita da Silva e Marielle Franco

Por Isis Vergíli Do Marie Clarie

Erica Malunguinho: primeira mulher negra trans a ocupar um cargo eletivo, ela foi eleita deputada estadual em São Paulo pelo PSOL (foto: Reprodução/Marie Clarie)

As mulheres brasileiras conquistaram o direito ao voto a partir do código eleitoral de 1932. Mulheres casadas precisavam da autorização dos maridos e, as solteiras ou viúvas, comprovar renda própria.

Nesse contexto, e com as dificuldades da herança pós-abolição, é importante lembrar que o número de mulheres negras beneficiadas por essa lei era muito baixo. Contrariando todas as probabilidades, foi nesse cenário que Antonieta de Barros conseguiu ser eleita deputada estadual, a primeira mulher negra a alcançar esse feito, atuando na Assembleia Legislativa de Santa Catarina entre 1934 e 1937.

Antonieta foi educadora, jornalista e política. Nasceu no dia 11 de julho de 1901, em Florianópolis, e dedicou sua trajetória a três causas principais: educação para todos, valorização da cultura negra e emancipação das mulheres no Brasil.

Antonieta se formou professora e fundou o Curso Particular Antonieta de Barros, voltado para alfabetização da população carente, projeto que manteve por toda sua vida. Fundou e dirigiu o jornal A Semana (1922/27), foi diretora da revista quinzenal Vida Ilhoa (1930), escreveu artigos para os jornais O EstadoRepública e também um livro chamado Farrapos de Ideias_um compilado de todas  as  suas crônicas publicadas sob o pseudônimo de Maria da Ilha. Pensar todos os feitos de Antonieta em um momento em que, no país, muitas mulheres ainda não podiam sequer votar, é revolucionário.

Durante a ditadura do Estado Novo, Antonieta teve seu mandato interrompido, em 1937, e, dez anos depois, em 1947, foi eleita novamente.

Lélia Gonzales: a antropóloga atuou no movimento feminista, exigindo que as ativistas atendessem as demandas das mulheres negras (Foto: Divulgação)

Embora suas histórias sejam pouco lembradas, diversas mulheres negras tiveram papéis fundamentais na trajetória política brasileira, entre elas, a feminista Lélia Gonzalez. Mestra emcomunicação social e doutora em antropologia política, disputou vaga na Câmara Federal em 1982, alcançando a primeira suplência. Em 1986, se candidatou como deputada estadual, também conquistando a suplência. Apesar de não ter assumido as cadeiras na Assembleia Legislativa e no Congresso Nacional, Lélia teve e ainda tem um papel fundamental, sendo uma grande referência dos movimentos negros no Brasil.

No artigo Lembrando de Lélia, escrito pela administradora e ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial Luiza Bairros, a militância da intelectual é celebrada. “O traço mais característico de Lélia é a capacidade ímpar de nos instigar com a exuberância de sua fala, nos inspirar com a luminosidade de sua personalidade”.

Lélia integrou e fundou diversas organizações, entre elas, o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), o Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga e se destacou pela importante participação que teve no Movimento Negro Unificado MNU.

Benedita da Silva , por sua vez, protagonizou outro marco político brasileiro, como a primeira mulher negra eleita senadora. Nascida em 1942, no Rio, Benedita foi vice-governadora do estado e assumiu o cargo de governadora em 2002. Em 2001, presidiu a Conferência Nacional de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, que reuniu mais de 10.000 pessoas de todo o país, entre lideranças de ONGs e governos. Ela assumiu a Secretaria Especial da Assistência e Promoção Social, com status ministerial no governo Lula e também a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio.

Democracia & racismo
No documento A Participação de Mulheres Negras nos Espaços de Poder, escrito por Luiza Bairros e apresentado em 2010, a equação democracia e racismo é abordada como um chamado ao aprofundamento real dessa questão-chave. É fundamental que se aprimore a produção de dados sobre as desigualdades raciais e de gênero, de modo a dar visibilidade às lacunas do processo democrático e às formas como elas afetam diferentemente homens e mulheres. Para que ocorram as mudanças na participação das mulheres nos espaços de poder, é necessário dispormos de outras análises sobre desigualdades, capazes de revelar as dinâmicas que também colocam obstáculos à igualdade entre mulheres negras e brancas, afirma Luiza.

Em 2018, tivemos um aumento significativo na participação de mulheres negras e indígenas se candidatando a cargos políticos, sobretudo, no legislativo. No entanto, no que diz respeito ao incentivo a essas candidaturas, nos deparamos com um cenário assustador, alimentado pela má distribuição de recursos. E essa disparidade passa, entre outras coisas, pelo filtro do racismo.

De acordo com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em relação às eleições de 2014, cresceu em 70% o número de pessoas que se autodeclaram pretas. De 679 para 1.153, foi o aumento no número de candidaturas de mulheres negras nessas eleições. No todo, as mulheres ainda são a minoria, representando 30,6% do total mínimo obrigatório por meio de cotas. Negras e indígenas são uma parcela ainda menor: representam 11,21% do total das candidaturas.

Com a proximidade das eleições, é importante amplificar o coro que pergunta, ainda sem resposta: Quem matou Marielle Franco?. Vereadora mais votada no Rio de Janeiro, com atuação corajosa e efetiva junto às comunidades da cidade, teve sua trajetória brutalmente interrompida. Foi assassinada a tiros neste ano, num crime não solucionado pelas autoridades.

Anielle Franco: irmã de Marielle Franco comanda o importante projeto Papo Franco (Foto: Kamille Viola)

Conversei com Anielle Franco, irmã de Marielle que mantém viva a memória da vereadora e me contou, generosamente, sobre um projeto importante chamado PAPO FRANCO. O objetivo da ação é garantir a formação política de adolescentes mas principalmente de mulheres negras nas comunidades do Rio de Janeiro “O objetivo principal e inicial do papo franco é a formação política do pensamento crítico de adolescentes, principalmente meninas negras. O nosso intuito é fazer com que as meninas de favela tenham acesso a coisas que talvez elas nem saibam que existam, como bolsa de estudo em outro país, o que aconteceu no meu caso.”

Anielle Franco, com incentivo da família e em especial de sua irmã Marielle, é bacharel em letras e jornalismo pela Universidade de Carolina do Norte e  é mestra em letras e jornalismo pela universidade da Florida A&M.

Vivemos em uma sociedade estruturalmente machista e racista, assistimos sistematicamente ao apagamento e a invisibilidade das produções intelectuais, dos fazeres e saberes e dos grandes feitos de pessoas negras e dos povos indígenas.

Considerando a pluralidade de pessoas negras e indígenas em diferentes áreas e segmentos penso que se torna cada vez mais necessário falar desses que abriram espaços para nós e daquelas que continuam avançando mesmo enfrentando uma realidade excludente, injusta e cruel.

Agradeço à Marie Claire por esse novo espaço de diálogo, e aproveito para compartilhar com as leitoras a minha felicidade em poder dividir um pouco das reflexões que me atravessam. Sintam-se abraçadas por mim. E como quem não se posiciona, posicionado está, aproveito para dizer que #elenão #elenunca.

+ sobre o tema

Fome extrema aumenta, e mundo fracassa em erradicar crise até 2030

Com 281,6 milhões de pessoas sobrevivendo em uma situação...

Presidente de Portugal diz que país tem que ‘pagar custos’ de escravidão e crimes coloniais

O presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, disse na...

O futuro de Brasília: ministra Vera Lúcia luta por uma capital mais inclusiva

Segunda mulher negra a ser empossada como ministra na...

Desigualdade ambiental em São Paulo: direito ao verde não é para todos

O novo Mapa da Desigualdade de São Paulo faz...

para lembrar

Combate a corrupção: em que mãos iremos entregar o Brasil?

Esse artigo será com diversas questões, para tentar fazer...

Enquanto Queiroz e a mulher vão para domiciliar, jovem preso com 10 g de maconha morre na prisão de covid-19

Enquanto a Justiça soltava Queiroz e concedia prisão domiciliar...

Iniciativa da sociedade civil resgata legado da Conferência de Durban contra o Racismo 

Sem ação política coletiva não é possível alcançar transformações...

Chuva em janeiro em SP é a maior em 15 anos, diz CGE

O acumulado da chuva registrada até quinta-feira na cidade...

Foi a mobilização intensa da sociedade que manteve Brazão na prisão

Poucos episódios escancararam tanto a política fluminense quanto a votação na Câmara dos Deputados que selou a permanência na prisão de Chiquinho Brazão por suspeita do...

MG lidera novamente a ‘lista suja’ do trabalho análogo à escravidão

Minas Gerais lidera o ranking de empregadores inseridos na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A relação, atualizada na última sexta-feira...

Conselho de direitos humanos aciona ONU por aumento de movimentos neonazistas no Brasil

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, acionou a ONU (Organização das Nações Unidas) para fazer um alerta...
-+=