Em cine-debate da ONU que reuniu mais de 60 pessoas no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, pesquisadores e ativistas discutiram na terça-feira (10) o legado da diáspora africana no Brasil.
Do século 16 ao 19, o país recebeu cerca de 5 milhões de pessoas da África, trazidas como escravos. Entre os descendentes dessa migração forçada, estão os quilombolas, que até hoje lutam pelo direito à terra para preservar modos de vida tradicionais.
Evento foi organizado pelo Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio).
Em cine-debate da ONU que reuniu mais de 60 pessoas no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, pesquisadores e ativistas discutiram na terça-feira (10) o legado da diáspora africana no Brasil. Do século 16 ao 19, o país recebeu cerca de 5 milhões de pessoas da África, trazidas como escravos. Entre os descendentes dessa migração forçada, estão os quilombolas, que até hoje lutam pelo direito à terra para preservar modos de vida tradicionais.
Para Luiz Rufino, doutor em Educação e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a herança da opressão colonial, bem como a marginalização dos afrodescendentes são fenômenos que perduram.
No Brasil, sete em cada dez pessoas assassinadas são negras. Na faixa etária de 15 a 29 anos, são cinco vidas perdidas para a violência a cada duas horas. A cada 23 minutos, um jovem negro é morto.
“O que tem se produzido é o permanente genocídio da população negra, do feminicídio e a exclusão dessa camada populacional por conta de uma escola que não os reconhece como sujeitos da própria produção da história”, avaliou o especialista. “O legado de violência permanece.”
Organizado pelo Centro de Informação da ONU para o Brasil (UNIC Rio), o evento teve a exibição do documentário Rostos Familiares, Lugares Inesperados: uma diáspora africana global, dirigido por Sheila Walker. O filme apresenta a riqueza cultural e intelectual levada pelos africanos para os países onde foram escravizados. Costumes, saberes e práticas típicas são mantidos em comunidades da América Latina, Caribe e Ásia.
Herança africana
Elisa Larkin, diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), lembrou que o Brasil recebeu quase metade dos 10 milhões de africanos trazidos como escravos de seu continente de origem para as Américas.
“O que existe é o racismo muito evidente na constituição da sociedade brasileira. Esse racismo, durante muito tempo, ficou mascarado pelo discurso da democracia racial, que falava sobre miscigenação.”
A pesquisadora vê progressos nos últimos anos no Brasil e cita, como exemplo, as leis de cotas raciais para a entrada de negros no ensino superior público. Os avanços, porém, enfrentam ondas de retrocesso e manifestações discriminatórias.
“Agora que o povo negro está reivindicando e conseguindo conquistar espaços antes reservados aos setores da elite branca, nós estamos assistindo à reação contra essa perda de território. Esse medo da perda de privilégios é o que motiva esse discurso tão agressivo agora contra o povo negro.”
Formada em ciências sociais pela Universidade do Estado de Nova Iorque (SUNY), Elisa é viúva do ativista Abdias Nascimento, que há 40 anos denunciava a violência contra os afrodescendentes no Brasil, com a publicação em 1978 do livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado.
A pesquisadora ressaltou que “o genocídio não é só a matança direta, também é a apropriação e a negação de um legado cultural e das tradições de um povo”. Segundo Elisa, a memória deve ser o esteio de permanência dessas tradições, contra o apagamento da história da população negra.
“No campo da educação, é necessário recuperar o conhecimento sobre o papel dos povos africanos na construção do conhecimento humano, da tecnologia.”
No Brasil, desde 2003, a lei 10.639 determina a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas instituições de ensino fundamental e médio, públicas e particulares. Em 2008, o texto foi revisado para contemplar também os povos indígenas.
Um terreiro de candomblé ou uma roda de capoeira é um locus de uma filosofia própria.
“Atualmente, a gente percebe uma dificuldade grande na implementação desses conteúdos”, afirma Luiz Rufino, que atribui os problemas na efetivação da legislação à discriminação estrutural.
“Esse racismo opera em diferentes faces, inclusive na face epistêmica, que se dá na ordem da produção do conhecimento, do que é saber”, aponta.
“Hoje, a gente discute, por exemplo, todo um currículo de filosofia nas escolas que é euro-centrado, que edifica o legado ocidental, moderno, em detrimento da atividade de pensamento de outras sociedades. Podemos pensar que um terreiro de candomblé ou uma roda de capoeira é um locus de uma filosofia própria”, defende Rufino.
Quilombolas pelo direito à terra
Também presente no evento, Damião Braga, liderança do Quilombo Pedra do Sal, alertou que os quilombolas brasileiros ainda não têm seu direito ao território plenamente efetivado. “O principal desafio é a titulação”, avalia o ativista. A medida garante a posse da terra e assegura que “ninguém vai entrar na sua casa e te tirar de lá”.
Os quilombolas são grupos étnico-raciais remanescentes das comunidades dos quilombos. Seguindo critérios de autoatribuição, essas populações têm relações específicas com seu território, baseadas na resistência à opressão histórica sofrida.
Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), existem mais de 16 milhões de quilombolas no Brasil. Atualmente, 2.847 comunidades já foram reconhecidas e certificadas. Mas de acordo com um levantamento de abril de 2017 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), somente 220 títulos foram emitidos, beneficiando apenas 294 comunidades.
O Quilombo da Pedra do Sal foi mencionado no dossiê que o Brasil apresentou à UNESCO para solicitar o título de patrimônio mundial da humanidade para o Cais do Valongo, localidade do porto do Rio de Janeiro que teria recebido de 500 mil a 1 milhão de africanos escravizados. A comunidade quilombola próxima ao Cais é descrita como “evidência histórica” da escravidão no Brasil.
“Mesmo o Estado brasileiro nos utilizando para obter essa chancela da UNESCO, esse mesmo governo não nos reconhece a ponto de nos dar o título da terra, que é o que nos garantiria a segurança jurídica”, critica Damião.
Para o militante, que integra o Conselho Gestor do Sítio Arqueológico Cais do Valongo Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, o reconhecimento de parte da região portuária pelo organismo internacional valoriza as comunidades herdeiras da diáspora africana.
“Esse título não é somente nosso. Ele é de todos os quilombolas, não só do Brasil, mas como mostrava no filme, de todo o mundo. Muitas pessoas jamais iriam imaginar que teriam pretos na Índia, na Turquia.”
Elisa Larkin acrescenta que “o quilombismo (também) traz uma proposta de organização da sociedade nacional”. Esse modelo preza pela “distribuição de riqueza e construção de igualdade entre as populações, mas com a dimensão maior de se tratar da igualdade e do desenvolvimento das identidades próprias dos segmentos que compunham a população brasileira”.
O evento no Rio de Janeiro lembrou o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Comércio Transatlântico de Escravos, observado pela ONU em 25 de março. Durante o debate, foram distribuídos adesivos da campanha Vidas Negras, uma iniciativa das Nações Unidas no Brasil pelo fim da violência contra a população afrodescendente.
A ONU instituiu em 2015 a Década Internacional de Afrodescendentes, período em que a comunidade internacional se compromete a desenvolver ações específicas para promover e preservar os direitos humanos, a cultura e a história da população negra de todo o mundo.