Nós por nós: Mulheres negras, mães e faveladas

Enviado por / FonteEcoa, por Anielle Franco

Nos aproximamos das 100 mil mortes em menos de 6 meses desde o início da pandemia. Foram milhares de vidas perdidas e famílias destruídas, não somente pelo vírus, mas pelo abandono do Estado que não foi capaz de atender, de forma ampla, a população que mais precisa, a população que não pode parar e se isolar em casa, que não teve tempo de correr para um hospital quando mais precisou, e que segue, mais uma vez, sendo massacrada pela desigualdade.

Nessa mesma semana, saiu a notícia de que o Brasil bateu um novo recorde, o de mortes maternas por Covid-19. No início de julho, nossas gestantes e puérperas já correspondiam a 77% das mortes maternas de todo o mundo.

Somos o país onde mais morrem gestantes e puérperas em decorrência do novo coronavírus. Ao todo, já são mais de 200 mulheres brasileiras que não tiveram a chance de ver suas filhas e filhos crescerem. Muitas delas, por negligência do Estado em não fortalecer o cuidado com quem mais precisa nesse momento, ou por tornar secundário o cuidado com as mulheres.

Nas favelas, a situação não é diferente, a pandemia continua a fazer vítimas, mas parece não estar acontecendo nada.

Segundo dados do painel da Covid-19 Nas Favelas da Voz das Comunidades, apenas no Rio de Janeiro, minha cidade, até o dia 29 de julho, já eram 630 mortes pelo vírus nas favelas, sem contar, nas mortes por armas de fogo e violência que mesmo durante essa grave crise sanitária seguem acontecendo, como foi o caso do menino João Pedro, de apenas 14 anos.

Todas essas dimensões de alguma forma também me atravessam.

Eu sou o retrato deste corpo: mulher, negra, mãe e favelada. Corpos como o meu se encontram expostos diariamente a todo tipo de violência e racismo, e tudo isso me faz querer agir e seguir na luta por justiça.

Ao mesmo tempo, penso no privilégio em, pelo menos na minha última gestação e também durante essa pandemia, não ter sido atingida diretamente por todas essas formas de violência.

Ainda assim, sei que muitas das minhas são, e por isso destaco a importância do fortalecimento dessas redes de solidariedade de mulheres negras e da população de favela, que seguem firmes por todo país.

São esses grupos que seguem se reinventando para construírem soluções e enfrentarem da melhor forma possível esse momento, que parece estar longe de passar.

É o caso, por exemplo, do episódio que aconteceu com Licyane Almeida, uma mulher negra, gestante, que semanas atrás foi vítima de racismo obstétrico em uma unidade de saúde. Ela não teve acesso a um atestado médico, o que a impediu de ficar em casa nos seus últimos dias de gestação, mesmo passando mal.

Ela precisou ir para as redes sociais, denunciar o que estava passando, e imediatamente contou com o apoio de influenciadores negros para conseguir montar seu enxoval e poder ficar em casa descansando naquele momento tão desesperador.

Isso é um exemplo do que a solidariedade e o senso de coletividade podem produzir, no momento em que as políticas públicas e o Estado falham conosco.

Esse é o caso também, das mais de 560 ações em mais de 650 favelas e periferias de todo o Brasil, cadastradas no Mapa Corona nas Periferias do Instituto Marielle Franco e do Favela em Pauta, e que seguem firmes acontecendo mesmo após 5 meses de pandemia.

Realizamos também o Agora é a Hora, com alguns de nossos parceiros, que atua na garantia do acesso das mulheres negras ao direito de seguir em frente em meio a essa crise, com doações de cestas básicas a famílias de todo o Rio de Janeiro.

Por ações como essas, e pelo nosso povo, é que desejo que possamos seguir fortalecendo nossas redes, construindo novos futuros possíveis e encontrando novas formas de viver plenamente neste país, que todos os dias tenta nos destruir.

 

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