Que existe racismo no Brasil, não há dúvidas. Que isto é estrutural, institucional ou (como diria Frantz Fanon) existencial, também é sabido por parte da população que tem autocrítica. Porém, pouco se fala sobre o que acontece quando o poder está em mãos de mulheres negras.
Por Jaqueline Vasconcellos, enviado para o Portal Geledés
Na pirâmide social da exclusão, são as mulheres negras que estão no assoalho e que são pisadas por toda sorte de opressores. Porém, em se tratando de mulheres com algum nível de poder, existe certo esforço social, em especial dos homens ao seu redor, em tornar velado o racismo e o machismo, mas ainda assim, não deixá-las achar que as ordens são dadas por elas.
Alexandra Loras, ex-consulesa da França, mulher negra, denomina essa cordialidade como “apartheid cordial”, para definir o que mulheres negras enfrentam em nosso país.
Curioso observar que, quando vemos mulheres negras ocupando altos cargos na política, por exemplo, dificilmente lhes será dispensado o mesmo tratamento dado a homens, inclusive aos políticos negros. Dificilmente, por exemplo, alguém chamaria o antigo prefeito da cidade de São Paulo, Sr. Celso Pitta (1946-2009), por seu nome, sem antes antecedê-lo pela expressão “Doutor”.
Vejam bem, segundo as regras da língua portuguesa, idioma falado em nosso país, alguém com alto cargo público no executivo seria tratado por Vossa Excelência (V. Ex.ª). Aos secretários é reservado o pronome de tratamento “Vossa Senhoria”. Doutor é tratamento reservado a quem tem título acadêmico que o valha, ou há alguns bacharéis, por exigência das associações de classe. A saber, advogados e médicos.
No entanto, ao circular em ambientes governamentais, é muito comum ver Secretárias e suas chefes de gabinete serem tratadas com certa intimidade forçada por seus nomes ou sobrenomes. O contrário, quando se trata de Secretários homens, não vale. Vez ou outra, quando branca, uma mulher nessa situação pode ter a valia desse título “Doutora”, mas a uma negra é reservado por esse “apartheid cordial” a condição de igual.
Qual subordinado homem ou mesmo cidadãos da sociedade civil admitiriam o poder conferido a uma mulher negra pelo seu cargo? Nem doutora, nem Vs. Senhoria.
Atualmente a Bahia tem uma mulher negra como sua secretária de cultura, bem como uma chefe de Gabinete e uma Diretora institucional, de uma das nossas principais autarquias, da mesma identidade cultural.
O que proponho é a autocrítica social baiana se, ao defenestrar as escolhas de gestão das senhoras Arany Santana (Secretária de Cultura do estado da Bahia), Sra. Cristiane Taquari (sua chefe de gabinete) e Sra. Renata Dias (Diretora Geral da Fundação Cultural do Estado da Bahia), estamos tratando da líder que ocupa a pasta, da sua competência em gestão ou do seu gênero?
Mesmo enfrentando duras críticas, os secretários anteriores continuaram sendo “doutores” e talvez lhes fosse conferido alguma respeitabilidade. Porém, a estas mulheres que são “funcionárias de piso” (como chamamos na Bahia quem não tem reservas ao trabalhar), não é reservada cordialidade, pois como ousam mulheres negras ocuparem cargos de poder?
Ousamos e temos o direito e a competência de estarmos neles. Aos homens que satirizam, ironizam e escarnecem estas gestões, lhes propomos uma revisita aos termos machismo e racismo, para entenderem seus significados.
Nossos destinos, quando em funções de poder, está sendo adoecer, pois estamos tendo que responder por nossa raça e nosso gênero.
Porém, continuamos de pé, diante das chicotadas em nossos ombros por suas línguas!
Jaqueline Vasconcellos é doutora em comunicação pela USP, gestora cultural, ativista, performer e atriz.
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