O fator mascarado

Combatido nos discursos, o preconceito ainda está muito entranhado na sociedade e nas escolas brasileiras

Fonte: UOL Educação 

Uma pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em 501 escolas públicas do país, e divulgada em junho deste ano, revelou dados preocupantes sobre o preconceito no ambiente escolar brasileiro. Das 18,5 mil pessoas entrevistadas, entre alunos, professores, funcionários e pais, 99,3% demonstram algum tipo de preconceito – étnico-racial, socioeconômico, de gênero, geração, orientação sexual ou territorial ou em relação a pessoas com algum tipo de necessidade especial.

De acordo com a pesquisa, os tipos de preconceito que apresentaram maior abrangência são aqueles relacionados a pessoas com necessidades especiais (96,5%), seguido por diferenças étnico-raciais (94,2%), e aqueles relativos a diferenças de gênero (93,5%). Além disso, assim como o preconceito, percebeu-se entre todos os públicos-alvo da pesquisa uma predisposição em manter menor proximidade em relação a determinados grupos sociais, como homossexuais, pessoas com necessidades especiais de natureza mental e ciganos.

Cláudia Vianna, professora da Faculdade de Educação da USP que pesquisa as relações de gênero e sexualidade na educação, explica que o preconceito é uma disposição afetiva que pode ou não se transformar em um ato de discriminação. Só que, no Brasil, muitas vezes o preconceito não chega a ser explicitado, ou mesmo entendido como tal. Uma das razões para tanto está no estereótipo disseminado do brasileiro brincalhão. Ofensas sobre a cor de pele ou a orientação sexual, por exemplo, são entendidas apenas como traço típico de uma personalidade nacional. “Mas certamente existe”, adverte Cláudia.

Neutralidade inexistente
Apesar de, em tese, a escola dever desempenhar um “papel neutro” no processo de transmissão de valores culturais – entenda-se por neutro o fato de não privilegiar nenhum credo, cultura ou procedência – e colaborar para a superação de preconceitos, na prática ela acaba sendo um fator de reforço daqueles já existentes. Isso porque os professores e autoridades escolares reproduzem, por meio de gestos, posturas e falas, sistemas de pensamento e atitudes que são excludentes. Ou seja, os educadores fazem eco, no ambiente escolar, às imagens negativas e estereótipos entre os quais muito provavelmente foram socializados.

Há, por exemplo, casos em que professores relacionam o rendimento escolar de alunas apenas ao esforço e ao bom comportamento, sem estimular a criatividade ou o potencial para certas matérias curriculares como matemática. “Essa baixa expectativa sobre o desempenho escolar de meninas claramente contém um padrão sexista”, afirma Cláudia Vianna. O cientista social Paulo Neves conta que uma pesquisa de sua autoria verificou que em alguns casos alunas recorrem à violência como forma de serem respeitadas. “Mas assim são duplamente repreendidas: por utilizarem uma forma de agressão para resolver os conflitos e por serem meninas, portanto utilizando-se de algo considerado contrário à sua natureza”, revela o estudioso.

No artigo “O fracasso escolar de meninos e meninas: articulações entre gênero e raça”, publicado em 2003, a também professora da Feusp e estudiosa das relações de gênero Marília de Carvalho coletou informações sobre a cor atribuída às crianças da quarta série de uma escola fundamental de São Paulo, a partir de duas percepções: a dos professores e a dos próprios alunos. Após cruzar essas informações com o índice de aproveitamento de cada estudante, constatou-se uma tendência dos professores em “embranquecer” os melhores e “escurecer” os piores.

Não que as instituições de ensino sejam as principais responsáveis pela permanência ou não de práticas discriminatórias, mas elas são parte fundamental para o entendimento e aceitação da diferença. Para exercer a função de inserir os jovens no espaço público, que é aquele em que se dá (ou, ao menos, em que deveria se dar) a aceitação da diversidade, a escola precisa se colocar de maneira firme contra as práticas preconceituosas e discriminatórias. E isso pode começar pela compreensão das relações existentes nesse ambiente, mostrando suas fissuras e contradições. “O educador deve estar preparado afetiva e intelectualmente para interferir nas situações em que os conflitos emergem”, afirma Luiz Alberto Gonçalves, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O problema é que, segundo Gonçalves, a introdução do tema da diversidade nas escolas ainda é algo recente no país e muitos professores não têm formação e conhecimento para mediar apropriadamente essas situações. Só a partir dos anos 90 as políticas educacionais, por força das demandas sociais, sobretudo dos grupos excluí­dos na sociedade, foram obrigadas a reconhecer que o ambiente escolar brasileiro é pluricultural e pluriétnico.

Cortando pela raiz
Para enfrentar esses problemas, atualmente o MEC oferece cursos de formação continuada trabalhando a temática da diversidade e colocou em vigor a Lei 10.369, de 2003, que torna obrigatória a inclusão do estudo das “Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. Só que Luiz Gonçalves entende que essas ações podem criar a expectativa de que basta introduzir mudanças no currículo escolar e o problema do preconceito estará resolvido. Para ele, é preciso mudar a postura do corpo docente frente aos conteúdos e às relações escolares, assim como é preciso haver um esforço para construir uma nova forma de fazer a educação escolar. Combater o preconceito pressupõe reconhecer o outro na sua diferença e esse reconhecimento começa no próprio docente. “Muitas crenças que foram difundidas pelos conteúdos tradicionais terão de ser questionadas e até banidas”, fala.

Já Paulo Neves diz que não basta a escola desenvolver um trabalho para dias como o da consciência negra ou das mulheres se, no seu cotidiano, aqueles que pertencem a esses grupos são discriminados. Por isso, é importante elaborar um projeto político-pedagógico consistente, em que o estudo da temática esteja inserido tanto na sala de aula quanto nas horas de trabalho pedagógico coletivo. Entretanto, deve-se tomar cuidado para não haver exageros. Muitas discussões sobre as questões ou a excessiva criação de projetos acabam por prejudicar a consistência da reflexão dos envolvidos. “No fim, após passar pela escola, posso continuar acreditando nos preceitos de minha religião, por exemplo, mas não posso sair pensando que ela é a única e verdadeira”, explica.

Cláudia Vianna, da USP: reconhecimento do conflito como ponto de partida
Cláudia Vianna compartilha a tese e entende que caminhar nessa direção requer o reconhecimento do conflito como pilar dos projetos coletivos. A partir daí, os professores podem promover a interação da diversidade, criando ambientes seguros para que eles e seus alunos possam questionar e refletir os valores hierarquizantes relacionados ao gênero, raça, classe social e idade, além de interferir na reprodução de estereótipos, sem medo do preconceito ou da exclusão. Vianna propõe também analisar com os alunos as atribuições e significados dominantes estudando-se os veículos da comunicação. De fato, a pesquisa da Fipe mostra que o incentivo ao acesso às mídias pode reduzir o preconceito observado entre os alunos em relação a todos os temas pesquisados.

Ainda assim, além da sala de aula, o preconceito deve ser encarado como um problema complexo, que atinge esferas diferentes. O diretor de Estudos e Acompanhamento das Vulnerabilidades do MEC, Daniel Ximenes, acredita que qualquer ato desse tipo deve ser combatido via educação, mas isso não é tarefa somente da escola. Instâncias como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal de Justiça também precisam denunciar e tomar posições. “No caso da escola, deve haver uma integração com os órgãos públicos e a comunidade ao seu redor, com iniciativas e diálogos sendo constantemente estimulados”, completa.

Maus resultados
Um dos pontos mais polêmicos da pesquisa publicada pela Fipe indica que as ações discriminatórias são um fator importante para a qualidade no desempenho escolar dos alunos. Utilizando como base a Prova Brasil de 2007, chegou-se à conclusão de que existe uma correlação negativa sobre o conhecimento de ações discriminatórias e as médias dessa avaliação nas escolas. Ou seja, onde as ocorrências foram maiores, as notas tenderam a ser menores.

Paulo Neves diz que não há como medir as consequências dessas atitudes no longo prazo, mas se elas não forem rechaçadas, acabam se tornando legítimas e prejudicam não somente o ambiente e o desempenho escolar como a fase em que crianças e adolescentes estão construindo uma identidade. “Se não há uma atitude contrária, a postura é reforçada e um aluno pode entender que é normal ter o mesmo procedimento”, fala.

A pesquisa mostra ainda que a ocorrência de agressões, simbólicas ou de fato, contra professores e funcionários é mais nociva ao desempenho escolar dos alunos do que onde essas ações ocorrem contra os próprios estudantes. O estudo comparou as escolas em que se tinha conhecimento desse tipo de ocorrência (designadas como bullying no estudo) contra os dois grupos, cotejando esse fator com o desempenho na Prova Brasil. A agressão contra professores e funcionários mostrou-se pior, revelando que, quando isso acontece, passa a haver uma maior desestruturação da instituição.

Luiz Gonçalves afirma que tal razão é evidente, pois os educadores sem boas condições psicológicas acabam comprometendo o conteúdo a ser ensinado. Isso também ajuda a confirmar a ideia de que o educador é um dos profissionais que mais apresentam estresse em decorrência do trabalho. Segundo dados da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), 30% dos afastamentos em escolas da rede pública do país são resultantes de estresse e depressão. Outra pesquisa, realizada em 2003 pelo Sindicato dos Professores de Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), apontou que a depressão atingia então um em cada quatro professores paulistas. Para 62,4% deles, a violência escolar era a causa.

 

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