O negro na literatura infantil: apontamentos para uma interpretação da construção adjetiva e da representação imagética de personagens negros

Valdinei José Arboleya*

A literatura infantil apresenta-se como uma perspectiva instigante junto à necessidade de reformulação dos padrões ideológicos.

Educação Infantil

A criação iconográfica e a representação estética no contexto da Educação Infantil sempre manifestaram vínculos com a estilização de imagens cujo traço, plasticidade e coloração denotam uma presença fantasiosa, animada e dotada de uma carga simbólica de ingenuidade refletida nas formas como a literatura infantil desenham nossas personagens. Em outras palavras, a representação da beleza esteve e ainda está atrelada às imagen s postergadas pelas obras literárias infantis que não se constituem necessariamente pela representação iconográfica autônoma, mas pelos indicativos deixados pelo texto escrito para que se construam essas imagens a partir de uma realidade social e cultural expressa ou implicitamente narrada.

Todo texto literário escrito ou narrado permite a construção de personagens a partir de sua descrição adjetiva e do conflito onde eles se encontram inseridos e, sobretudo, de sua posição e suas atitudes nesse conflito, atuando assim, na construção ideológica de cada sujeito. O gênero infantil, não obstante disto, sempre oportunizou a partir de sua narrativa, influências na concepção estética e no sentido de beleza da criança, não apenas a partir da representação iconográ fica, mas a partir da identidade étnica e cultural e da própria imagem que se constrói de cada personagem a partir de sua experiência no enredo da história. Bakhtin (1992) nos ensina no tocante a este aspecto, que as narrativas funcionam como estratégias formadoras de consciência, isto é, a leitura de uma história, um conto, uma narrativa enfim, pode proporcionar a oportunidade de se deparar com situações vividas pelas personagens que provocam sensações, reflexões e formas de identificação que acrescentam valores na consciência do leitor ao se identificar com os personagens, gerando assim, um conhecimento ético e estético.

O público infantil, de uma forma geral, espelha com clareza este aspecto ressaltado por Bakhtin pelas experiências que travam com uma ob ra literária ao associar os conflitos das personagens à sua prática cotidiana construindo reflexões e interconexões com a obra tanto a partir de sua própria experiência quanto pelas intermediações do trabalho pedagógico. Uma história infantil, contudo, não é, ou quase nunca é escrita por crianças, é uma obra dirigida a este público, mas é de “invenção e intenção do adulto” (MEIRELES, 1984: 29) e aí se encerra as questões centrais a serem refletidas pela abordagem pedagógica: de que forma estamos colaborando para que as representações de beleza e cultura sejam relativizadas pelas crianças? Em que medida estamos utilizando o texto literário para reflexão crítica de valores culturais, étnicos e morais e em que medida estamos apenas reafirmando valores, padrões e morais da cultura dominante?

O texto literário permite, dessa forma, a construção e a consolidação de valores culturais, morais e padrões de beleza reforçando “o ético e o estético” (ABRAMOVICH, 1997: 36). Serve-nos de exemplo a eficácia com que se aplicaram historicamente

os valores da cultura eurocêntrica, branca, cristã e ocidental, a partir da qual se convencionou valores como a representação iconográfica e ideológica da maldade através de lobos e bruxas, habitantes hediondos da floresta – indicando desde então oeternoconflitodacivilidadeurbanaversusabarbaridadedocampoedafloresta. – além da associação do mal com pessoas feias. Ou ainda a apresentação da idéia de beleza como clássica e universal através da descrição física e psicológica de Branca de Neve, ressaltando os aspectos físicos e culturais da raça ariana. Nessa construção estereotípica o negro é normalmente tornado “coadjuvante na ação e, por conseqüência, na vida” (Idem: 36) e a partir dela pode-se ressaltar intencionalmente ou não, relações de poder, padrões de beleza que convencionam imagens estereotipadas em mensagens morais.

De uma forma geral, discutir a intenção da beleza no contexto da educação infantil sempre foi uma tarefa delicada que em muitas situações sempre foi fe ita tomando como base a moralidade da obra literária infantil reafirmando valores, construindo referências éticas e estéticas e indicando situações culturais. Não se questiona o uso da obra literária para esse fim, visto que ela realmente patrocina

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essas reflexões ainda que não declare a intenção de fazê -lo, mas sim a construção de convenções morais e culturais a partir da interpretação das obras.

Rosemberg (1985), afirma que a literatura infantil, não obstante de outros gêneros, é em si mesma um campo efi caz de criação de estereótipos e padrões e de reprodução de valores convencionados se configurando como um gênero que também atua na construção ideológica.

Nesse sentido, a literatura infantil, como qualquer outra literatura ou forma de arte, não pode ser entendida apenas como produto cultural de um período histórico, mas como explicitação de pensamentos, atitudes e padrões de uma classe social:

Em livros de história, aparentemente ingênuos ou em deliciosos contos de fada, não é difícil perceber, através da trama, dos personagens e dos diálogos, se não do próprio assunto, a classe a que os autores pertencem ou que representam, com suas concepções de vida, seus valores e seus preconceitos. (AZEVEDO In; ZILBERMAN, 1988: 336).

Levando em conta estes aspectos e partindo da análise da influência ou determinação social dos valores e da produção artística é possível capturar o espelhamento de valores sociais nos temas e sentidos da literatura infantil quando se busca entender de que forma se colocam os marcos de diferença e de afirmação da cultura eurocêntrica, branca, cristã, em parte tradicional, com ênfase no círculo familiar em oposição aos valores e à representatividade de personagens de outras etnias. Um personagem etnicamente distinto daqueles que nos acost umamos e descrever e visualizar a partir das obras literárias infantis constitui através de sua apreciação adjetiva uma nova idéia de beleza que cria a partir do enredo, formas de representatividade social e identidade cultural que atuam na ruptura de padr ões estéticos.

A obra de arte literária apresenta-se assim, como uma arte e uma forma de representar o mundo real, seja através da descrição tensa desse real transformada em narrativa com personagens fictícios, seja pela criação de personagens animados pela consciência encantadora do escritor e capturados pelo ilustrador de uma obra.

Essa característica essencial da obra infantil se constitui como um elo do real para o imaginário e deste para o real que age no sentido de cooptar dados da realidade discutidos a luz de um conflito aparentemente inocente. Por esse motivo, a literatura infantil não possui nenhuma possibilidade de se ausentar de influência de padrões e formas de interpretação do mundo e das relações sociais e sua utilização como meio de se disseminar uma idéia ou padrões socialmente convencionados não é uma deturpação da intenção da obra, pois ela nasce marcada por este objetivo:

A obra literária recorta o real, sintetiza-o e interpreta-o através do ponto de vista do narrador ou do poeta. Sendo assim, manifesta, através do fictício e da fantasia, um saber sobre o mundo e oferece ao leitor um padrão para interpretá-lo. (CADEMARTORI, 1986; 22-23)

O padrão oferecido ao leitor pode permitir uma identificação com a obra literária através das representações predicadas dela se abrindo às relativizações de outras formas de representação ideológica, a ausência de posicionamentos relativistas, porém, favorece condutas preconceituosas. A representação de poder, por exemplo, é um aspecto negligenciado na li teratura infantil que criou historicamente imagens distorcidas de poder colocando personagens de outras etnias convivendo e se redimindo de sua condição étnica e cultural
pela proximidade com a cultura eurocêntrica (ZILBERMAM, 1988).

Muitos aspectos que, no contexto da obra, parecem soar como inocentes recursos textuais e estilísticos podem atuar no sentido de reforçar preconceitos
a partir da forma como cada personagem é descrito, isto é, a forma como sua construção adjetiva se torna um valor positivo ou negativo na construção da identidade do personagem e da própria construção da identidade do leitor. A descrição pode endossar ideologias de branqueamento, de superioridade de uma raça ou cultura e da própria negação de uma identidade étnica em função da construção de outra, considerada superior, neste caso, o discurso do elemento branco, europeu e cristão.

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A ética e a estética gerada a partir da apreciação de personagens são aspectos que merecem a atenção quando sugere a preeminência de um estilo, comportamento ou mesmo etnia em detrimento das demais possibilidades. A produção clássica da literatura infantil mundial, por exemplo, nos oferta dezenas de situações onde se sobressaem idealizações de tipos físicos, psicológicos e culturais que dimensionam um príncipe ideal, imberbe, branco ocidental, uma princesa, um vilão e seus coadjuvantes. Tais personagens povoam o imaginário infantil e constituem por excelência, o referencial de beleza e destreza de muitas histórias infantis. Estas narrativas clássicas constituem no caso brasileiro, um recurso pedagógico constante na realidade educacional sócio -educacional e sociocultural do Brasil:

Algo interessante para refletirmos é o fato de nos serem dados a conhecer a literatura sempre a partir de um referencial europ eu. Fomos acostumados às diversas adaptações de contos de fadas como Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Joãozinho e Maria, Branca de neve ou às diversas histórias do livro Mil e uma Noites. (JOVINO: 2006: 183)

A representação social que o negro foi ocupando ao longo da história na literatura infantil, como personagem subserviente ou conivente com os saberes dos brancos, gerou um reforço negativo desta etnia como uma classe inferiorizada e marginalizada cujos personagens obedecem estes parâmetros. Para Is er (1983) o texto ficcional carrega consigo elementos do real e os questiona ou os alicerça através de seu posicionamento valorativo, esses elementos do real, contudo, não se limitam a presença de aspectos sociais, mas estão entranhados na emoção, no sentimento coletivo de um dado grupo cultural e simbolizam no plano estético um imaginário que mantém um vínculo estreito com a realidade retomada pelo texto. Essa é a grande habilidade de leitura de mundo que faz da literatura uma obra de arte com imenso poder simbólico, um poder que denota a capacidade que determinado elemento de produção ideológica possui de atuar e agir num grupo social. Para Bourdieu (1989), este poder pode estar vinculado a uma produção material, como a arte, e neste caso, a literatura inf antil como obra de arte, mas sua essência está na vinculação ideológica que este produto material possui. Estes

mecanismos ideológicos na literatura infantil, como em outros gêneros, levam o leitor a construir o que Iser (1983) chama de meios de afirmação da identidade e da cultura, ou seja, o leitor constrói meios de se encontrar representado na obra de acordo com a sua realidade social e com a dos personagens que vivem problemáticas semelhantes a sua no enredo da história e de posse desta reflexão constrói meios para a afirmação de uma identidade étnica e cultural.

Ao recorrer ao uso do adjetivo como meio de construção simbólica, a literatura infantil apresenta-se como um campo fértil de afirmação de padrões culturais e, inclusive de auto-afirmação étnica. Sabe-se que o imaginário infantil, conforme pensa Ribeiro, (1996) é uma possibilidade de construção de um novo imaginário coletivo mais ético e menos etnocêntrico. Com vistas à análise de um imaginário que não seja nem excludente, nem redutivista, o educ ador desempenha um papel fundamental ao possibilitar o contato literário desde a educação infantil com obras que refletem e redimensionam a construção da identidade e a valorização de determinados traços, padrões e estilos físicos, sociais e culturais onde não se encontrem negros como personagens deslocados da realidade social e cultural, subservientes e inferiorizados.

Pensando numa educação para as relações étnico -raciais, a literatura infantil apresenta-se como uma perspectiva instigante junto à necessid ade de reformulação dos padrões ideológicos. A prática pedagógica do trabalho com literatura infantil e contação de história deve embasar-se em outros aspectos dos contos clássicos, possibilitando um contato crítico com a obra e ao mesmo tempo, utilizar ob ras em que se verifique o negro desempenhando papel principal ou em atividades socioeconômicas valorizadas, recordando Souza (2001), que tenham perfil bem elaborado e com uma participação ativa no tempo presente da narrativa, buscando dessa forma, garantir ainda que no plano intencional mais que no prático, políticas educacionais com recorte étnico -racial efetivo.

As imagens iconográficas e as imagens narrativas podem significar, na pratica pedagógica, a massificação de um posicionamento étnico -cultural e de uma visão de poder ou ser a oferta de representações positivas do negro e do afro – brasileiro, ausentadas de visões estereotipadas. Um educador deve considerar efetivamente a existência de literaturas com abordagens diversificadas que contribuam para a preservação de mecanismos ideológicos que possibilitem a

 

afirmação da identidade cultural assim como a resignificação em torno do simbolismo criado a cerca da palavra negro e africano. A construção de um novo imaginário coletivo deve considerar o imaginário infantil como mundo de possibilidades para renovação das relações étnico -raciais e de uma arte-educação aberta à diferença onde a produção textual que desenha personagens e o desenho que espelha a produção textual à convivência e à diferença étnico -racial. A seguir listamos algumas obras, dentre tantas possíveis e ainda desconhecidas ou mal utilizadas, que reformulam o papel social do negro na literatura infantil podendo ser trabalhadas desde a educação infantil:

 

  • Luana – Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino; 
  • O Menino marrom – Ziraldo Alves Pinto; 
  • Histórias da Preta – Heloisa Pires Lima; 
  • Contos Africanos para crianças – Rogério Andrade Barbosa; 
  • Os reizinhos do Congo – Edmilson Pereira; 
  • Rainha Quiximbi e Dudu Calunga – Joel Rufino dos Santos; 
  • As Tranças de Bintou – Sylviane Diouf; 
  • Bruna e a galinha d’angola – Gercilga de Almeida 
  • Do outro lado tem segredos – Ana Maria Machado; 
  • Ilê Ifé – Carlos Petrovich e Vanda Machado.

 

PARA SABER MAIS:

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997.
BAKTHIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertand Brasil,1989.
CADEMARTORI, Ligia. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
ISER, Wolgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (org). A Teoria da Literatura em suas fontes. V. II. 2 ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983.
JOVINO, Ione da Silva. Literatura Infanto-juvenil com personagens negros no Brasil. In: SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré. (Org). Literatura Afro-brasileira. Salvador: Centro de estudos afro-orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
MEIRELES, Cecília. Problemas de literatura infantil. 4. ed. Rio de Janeiro: Summus, 1984.
Revista África e Africanidades – Ano I – n. 3 – Caderno África e Africanidades na Sala de Aula – Nov. 2008 ISSN 1983-2354 

 

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RIBEIRO, Ronilda. A ação educacional na construção de um novo imaginário infantil sobre a África. In: MUNANGA, Kabenguele (Org). Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo: Edusp, 1996.

ROSEMBERG, FÚLVIA. Literatura Infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1985.

SOUZA, Andréia Lisboa de. Personagens negros na literatura infantil e juvenil. In: CAVALEIRO. (Org). Racismo e Anti-racismo na Educação: repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.

ZILBERMANN, Regina; Lajolo, Marisa. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos . 3. ed. São Paulo: Global, 1988.

* Valdinei José Arboleya é Pós graduando em História e Cultura Afro – brasileira e Africana pela Uni ão Pan- Americana de Ensino com pesquisas em arte, literatura infantil e etnicidade.

Professor de Arte em projetos sociais e de Educação Infantil, exercendo, na cidade de Toledo, no Oeste do Paraná.

 

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Fonte: África e Africalidades

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