O que são Direitos Reprodutivos?

Considerando a historicidade dos direitos, recente é a emergência dos direitos reprodutivos e sexuais como direitos humanos.

Fonte: Feminismo.Org
Por Flávia Piovesan

Foi apenas em 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, que 184 Estados ineditamente reconheceram os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos.
Sob a perspectiva de relações eqüitativas entre os gêneros e na ótica dos direitos humanos, o conceito de direitos sexuais e reprodutivos aponta a duas vertentes diversas e complementares.

De um lado, aponta a um campo da liberdade e da autodeterminação individual, o que compreende o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção ou violência. Eis um terreno em que é fundamental o poder de decisão no controle da fecundidade. Nesse sentido, consagra-se a liberdade de mulheres e homens de decidir se e quando desejam reproduzir-se. Trata-se de direito de auto-determinação, privacidade, intimidade, liberdade e autonomia individual, em que se clama pela não interferência do Estado, pela não discriminação, pela não coerção e pela não violência. Por outro lado, o efetivo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos demanda políticas públicas, que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Nesta ótica, essencial é o direito ao acesso a informações, a meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis. Essencial também é o direito ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva e sexual, tendo em vista a saúde não como mera ausência de enfermidades e doenças, mas como a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e de reproduzir-se ou não, quando e segundo a freqüência almejada. Inclui-se ainda o direito ao acesso ao progresso científico e o direito à educação sexual. Portanto, clama-se aqui pela interferência do Estado, no sentido de que implemente políticas públicas garantidoras do direito à saúde sexual e reprodutiva.

Os direitos sexuais e reprodutivos invocam, assim, “assunto de vida e morte, de grande satisfação e profundo sofrimento, de paixão e frios cálculos, de intimidade e políticas sociais”, como bem acentua Ronald Dworkin.
Apresentados os delineamentos conceituais dos direitos sexuais e reprodutivos, importa abordar os princípios vetores destes direitos, sob a perspectiva dos direitos humanos contemporâneos. Destacam-se quatro princípios: a) o princípio da universalidade; b) o princípio da indivisibilidade; c) o princípio da diversidade; e d) o princípio democrático.

A Declaração Universal de 1948 adotada pela ONU, em resposta à barbárie da 2ª Guerra Mundial, inovou a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e pela indivisibilidade desses direitos. Universalidade, porque a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos, sendo a dignidade humana o fundamento dos direitos humanos. Indivisibilidade, porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Projeta-se, assim, uma visão integral dos direitos humanos, inspirada no ideário de que não há liberdade sem igualdade, nem tampouco igualdade sem liberdade. Note-se que a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim de 1995 endossam a idéia da interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos, ao afirmar que “na maior parte dos países, a violação aos direitos reprodutivos das mulheres limita dramaticamente suas oportunidades na vida pública e privada, suas oportunidades de acesso à educação e o pleno exercício dos demais direitos”.

Acrescente-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, em seu parágrafo 18, afirma que os direitos humanos das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. Esta concepção foi reiterada pela Plataforma de Ação da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, em 1995. Vale dizer, não há como defender direitos humanos sem que se inclua os direitos de metade da população mundial.

À universalidade e à indivisibilidade dos direitos humanos, soma-se o princípio da diversidade. Se a primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tônica da proteção geral, genérica e abstrata, com base na igualdade formal, na segunda fase surge a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em suas peculiaridades e particularidades. Nesta ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Ao lado do direito à igualdade surge, como direito fundamental, o direito à diferença. Com isso, há novos sujeitos de direitos e o direito ao reconhecimento de identidades próprias. Consolida-se o caráter bidimensional da justiça: enquanto redistribuição e enquanto reconhecimento de identidades. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.
Nesse sentido, a implementação dos direitos sexuais e reprodutivos deve levar em consideração as perspectivas de gênero, classe, raça, etnia e idade, dentre outras, considerando a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos.

Por fim, destaca-se o princípio democrático, a ser observado no campo da formulação de políticas públicas concernentes aos direitos sexuais e reprodutivos. Ainda que este princípio celebre o exercício dos direitos políticos, contemplados na visão integral dos direitos humanos, os parâmetros protetivos internacionais enfatizam a necessidade de que a elaboração de políticas públicas e a implementação de programas sociais assegurem a ativa participação das(os) beneficiárias(os), na identificação de prioridades, na tomada de decisões, no planejamento, na adoção e na avaliação de estratégias para o alcance dos direitos sexuais e reprodutivos. Consagram-se, deste modo, a exigência de transparência, a democratização e a accountability no que se refere às políticas públicas.

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Flávia Piovesan, professora doutora da PUC/SP nas disciplinas de Direito Constitucional e Direitos Humanos, professora de Direitos Humanos do Programa de Pós Graduação da PUC/SP, da PUC/PR e do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento na Universidade Pablo Olavide (Espanha), visiting fellow do Programa de Direitos Humanos da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) e Procuradora do Estado de São Paulo.

REFERÊNCIAS:
Sonia Corrêa e Maria Betânia Ávila, Direitos Sexuais e Reprodutivos – Pauta Global e Percursos Brasileiros, In: Elza Berquó (org.), Sexo & Vida: Panorama da Saúde Reprodutiva no Brasil, Campinas, ed. Unicamp, 2003, p.58).
Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR), General Comment 14, UN ESCOR, 2000, Doc. N. E/C 12/2000/4, bem como CEDAW, General Recommendation n. 24 , 1999. Consultar ainda Direitos Sexuais e Reprodutivos na Perspectiva dos Direitos Humanos, Advocaci/Funuap, Rio de Janeiro, 2003.
Ronald Dworkin, Life’s Dominion: An argument about abortion, euthanasia and individual freedom, New York, Vintage Books, 1994.
Nancy Fraser, Redistribución, reconocimiento y participación: hacia un concepto integrado de la justicia, In: Unesco, Informe Mundial sobre la Cultura – 2000-2001, p.55-56
Boaventura de Souza Santos, Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: Reconhecer para Libertar: Os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p.56. Ver ainda do mesmo autor “Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos”. In: op.cit. p.429-461.

 

Matéria original

 

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