Octavia Butler, a ‘primeira dama da ficção científica’ que reescreveu o futuro

‘Kindred’, livro mais famoso da autora, acaba de ser publicado no Brasil pela primeira vez.

Por Amauri Terto Do Huff post Brasil

Uma espera de mais de 40 anos chegou ao fim. Kindred agora está nas prateleiras de livrarias de todo o Brasil. Publicado pela editora Morro Branco, o título é aclamado nos EUA como o ponto alto da carreira de Octavia Butler (1947-2006), a primeira escritora negra a ganhar prestígio na literatura de ficção científica.

O romance foi lançado originalmente em 1979 e vendeu mais de meio milhão de cópias em todo o mundo, consagrando a autora como “A primeira-dama do sci-fi”. Em pouco mais de 400 páginas, o leitor acompanha a história de Dana, uma escritora negra que é transportada da Los Angeles dos anos 1970 para uma fazenda escravista no sul dos Estados Unidos, no início do século 19.

“Octavia consegue mostrar como o passado pode se manifestar no presente e como o presente também se encaixa no passado, e isso não se deve só à viagem no tempo, mas também aos assuntos que ela aborda e ao modo com que os aborda”, explica Carolina Coelho, tradutora da obra no Brasil.

A autora aborda de forma ímpar questões de raça e gênero no livro. Dana, livre presente, vai parar na casa de seus antepassados, onde vive uma nebulosa situação de escravidão. Rapidamente, ela entende que precisará enfrentar dois desafios: não sucumbir naquela sociedade que a odeia e garantir que seus antepassados sobrevivam para que ela mesma possa existir no futuro.

Octavia chegou a dizer em diferentes entrevistas que a inspiração para a trama de Kindred veio depois de ouvir jovens negros minimizando a gravidade da escravidão. Talvez por isso, o livro ofereça uma série de descrições detalhadas de torturas, castigos e espancamentos de negros escravizados.

“Octavia, antes de mais nada, é um trator. Conseguiu, no Kindred, abordar vários assuntos importantes, essenciais”, afirma a tradutora. Para Carolina, o livro pode transformar a visão do leitor sobre ficção científica. “Ela usa o gênero – e vale lembrar que ela dizia que Kindred não era exatamente um texto de ficção científica – e desafia suas convenções, explora a condição humana, desfaz os limites do gênero e cria algo maior e mais abrangente”, explica.

Para quem ainda não é iniciado no universo da literatura de ficção científica, a tradutora aponta uma característica do livro que pode gerar certo incômodo durante a leitura, mas que na sua opinião é também um ponto forte da trama.

“Octavia abre feridas e o leitor não as vê se fecharem, o que combina perfeitamente com a mistura de ‘estória’ e ‘história’ do universo de Kindred, que torna difícil e dolorosa a leitura de linguagem fácil, faz sentido de modo muito amplo, mas não exatamente específico”, explica.

 

A obra de maior alcance da escritora faz parte de uma afamada bibliografia composta por 15 livros – além de contos e ensaios – que tratam de distopias, aliens e até seres humanos geneticamente modificados.

O protagonismo negro é sempre destaque nas obras da autora que recebeu diversos prêmios ao longo da carreira, entre eles, os prestigiados Hugo Award e Nebula Award – firmando-se também como uma importante referência do movimento cultural afrofuturista.

A origem

Nascida e criada em uma comunidade “racialmente integrada” em Pasadena, no sul da Califórnia, Octavia Stelle Butler era filha de uma empregada doméstica e de um engraxate. Tímida e sempre mais alta que as crianças de sua idade, ela teve dificuldades de socialização. Por conta disso, passava boas horas da semana entre os livros da biblioteca pública da cidade.

Em casa, escrevia páginas e mais páginas de histórias em um caderno escolar.

O primeiro contato com a ficção científica por meio da TV. Aos 12 anos, Octavia assistiu ao filme A Garota Diabólica de Marte e de cara teve a certeza que poderia escrever uma história melhor do que aquela em que uma mulher saída de Marte apavorava os terráquios.

Era década de 50 e o contexto de segregação racial nos EUA se manifestava como uma barreira para que qualquer indivíduo negro sustentasse algum sonho. “Querida, negros não podem ser escritores”, disse uma vez tia Hazel para Octavia, sinalizando os obstáculos que a escritoria enfrentarira numa área dominada por homens, invariavelmente brancos.

A mãe de Octavia incentivavao desejo menina com revistas e livros descartados pelas famílias brancas para quem trabalhava. O pai de Octavia morreu quando ela tinha 7 anos de idade.

Os cadernos e anotações aumentaram durante a juventude.

No época da faculdade, trabalhava de dia e estudava à noite. Foi na Pasadena City College que ela ganhou seu primeiro concurso de contos. Décadas depois, a faculdade criaria uma bolsa de estudos em sua homenagem. Em 1968, Octavia se formou e, na sequência, teve um rotina dividida entre a escrita e empregos temporários.

Professores de cursos de escrita logo se impressionaram com a criatividade de Octavia, que não tardou em elaborar e publicar narrativas robustas, romances, trilogias, grandes histórias. Depois do sucesso de Kindred, a autora passou a dedicar seu tempo integralmente à escrita.

Uma curiosidade do processo criativo de Octavia é que, além de escrever lembretes sobre os personagens e cenários criados, ela anotava mensagens de incentivo para si mesma.

“Eu terei que ser uma escritora de sucesso. Meus livros irão para listas de mais vendidos, quer as editoras se esforcem ou não, quer eu receba adiantamento ou não, quer eu ganhe outro prêmio ou não. Então que seja! Eu encontrarei o caminho para fazer isso acontecer”, diz uma das anotações encontrada nos arquivos da escritora.

Hoje, essas anotações pertencem ao acervo da Biblioteca de Huntington, na Califórnia. Em julho deste ano, a instituição realizou uma exposição com os documentos e anotações pessoais da escritora.

Com seu nome escrito de forma definitiva e inspiradora na história da literatura, Octavia Butler morreu em 2006, um ano depois de ser admitida no Hall Internacional da Fama de Escritores Negros.

+ sobre o tema

Veto Já! Contra o golpe em nossos corpos e direitos

Contra o retrocesso, o racismo, a violência e Pelo...

Quase 50 anos depois, clássico da literatura negra chegará ao Brasil

Clássico da literatura negra chegará ao Brasil: chegará às...

estilista baiana, Mônica Anjos, apresenta sua nova coleção em São Paulo

Bazar VIP será promovido, neste sábado dia 9, para...

Rebeca Andrade fica em 5º lugar no solo com Baile de Favela nas Olimpíadas

Um passo. Foi isso que separou Rebeca Andrade de...

para lembrar

1,5 milhão de mulheres negras são vítimas de violência doméstica no Brasil

Elas representam 60% das 2,4 mi de agredidas. Reportagem...

A primeira juíza mulher da NBA e sua história de resistência

“Eu sabia que todo mundo estava esperando que eu...

É Tempo de Anastácia!

Quantas de nós, mulheres negras, ainda somos silenciadas nos...

Maria Júlia Coutinho será a primeira mulher negra a apresentar o Jornal Nacional

Jornalista entra para o rodízio de apresentadores do noticiários...
spot_imgspot_img

Peres Jepchirchir quebra recorde mundial de maratona

A queniana Peres Jepchirchir quebrou, neste domingo, o recorde mundial feminino da maratona ao vencer a prova em Londres com o tempo de 2h16m16s....

O futuro de Brasília: ministra Vera Lúcia luta por uma capital mais inclusiva

Segunda mulher negra a ser empossada como ministra na história do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a advogada Vera Lúcia Santana Araújo, 64 anos, é...

Ela me largou

Dia de feira. Feita a pesquisa simbólica de preços, compraria nas bancas costumeiras. Escolhi as raríssimas que tinham mulheres negras trabalhando, depois as de...
-+=