Os cabelos como fruto do que brota de nossas cabeças

Seria inevitável trazer qualquer expressão sobre o tema do cabelo sem falar da minha própria experiência de vida.  O interesse pelo alisamento de cabelos crespos foi, na verdade, objeto de minha pesquisa de mestrado e há bons tempos quero compartilhar os saberes que adquiri com mais pessoas, de dentro e fora do mundo acadêmico.

Por Luíse Bello Do Thin Kolga

Em setembro de 2009 defendi meu mestrado em antropologia social e cultural na Universidade de Strasbourg, na França, cujo tema é “Alisar seus cabelos em Salvador, Brasil: uma construção pela negação?”. O fato de estar na França me permitiu abraçar um tema de importância vital em minha vida (embora eu não tivesse tanta consciência disto durante o processo) de forma não planejada, pois não era mesmo o que eu tinha em mente. O afastamento geográfico de Salvador, a cidade onde fiz meu trabalho de campo (a minha etnografia), ajudou muito a abordar a temática. Aliás, jamais teria feito algo parecido se estivesse no Brasil. Para entender com mais clareza algo nosso (ou do outro) em certas ocasiões, adquirir distância pode ser muito esclarecedor.

Talvez o mais importante e o que de fato permitiu que eu escrevesse sobre este assunto na caminhada de meu mestrado tenha sido o fato de que tudo me conduzia muito naturalmente a um verdadeiro processo de auto-análise. O querer é essencial, e eu sempre quis ser. Estava totalmente em busca de minha essência mais verdadeira quando ingressei no mestrado, então, não poderia ter sido de outra forma. E não poderia ter sido melhor.

Salvador é minha cidade natal e é o local onde me sinto realmente em casa. Sinto um amor enorme por aquele lugar, de filha mesmo, de onde brota o reconhecimento. Apesar de não morar mais ali há 16 anos, sinto que é meu território, e por isso foi difícil encará-lo de forma mais distante. Foi preciso interrogar o meu já acostumado olhar sobre minha cidade, parte fundamental deste processo de re-conhecimento.

O alisamento começou a fazer parte de minha vida quando eu fiz 15 anos. Comecei a alisar periodicamente meus cachos, como um ritual de passagem para a vida de mocinha. Conto nos dedos hoje em dia quantas pessoas de fato me encorajaram a fazer o inverso. Salvador, “território africano”, é uma cidade bastante complexa, como muitos sabemos. Os movimentos negros e o destaque da trajetória dos povos negros pelo mundo afora puderam dar à cidade uma posição muito específica entre sua privilegiada localização geográfica e as identidades negras. Ela é reconhecida (e autodeclarada) como cidade de encontro e desenvolvimento de diversos povos de origem africana aqui no Brasil.

Depois de certa idade, comecei a perceber a quantidade absurda de mulheres andando pelas ruas, ônibus, shoppings, praias, com cabelos alisados. Questionar o lugar dos cabelos e situá-los dentro de uma sociedade foi indispensável para avançar na pesquisa. E foi para Salvador que eu virei meus olhos, já há alguns anos sem alisar meu cabelo e morando fora. Duas professoras, referências externas, colocaram aquele tema em meu colo. Eu não o escolhi, ele me encontrou.

Decidi validar pelo caminho acadêmico uma problemática social enquanto tal. A intenção não era de buscar qualquer “glamour” e sim de me levar a sério e de ser levada a sério, reforçando o respeito através do qual acredito que esta questão deva ser debatida. É importante mencionar que diversos estudos científicos se propuseram a abordar a história da mestiçagem e negritude brasileiras e que essas análises foram referências fundamentais para a minha pesquisa, mas este não é o objetivo aqui. A proposta é mostrar caminhos que me ajudaram na compreensão da questão e a compartilhar um pouco da construção da beleza no Brasil e de diversas questões que se referem ao cabelo e ao corpo, reforçando hipóteses sobre as motivações de mulheres, negras ou não, que faziam alisamento em seus cabelos crespos e/ ou cacheados.

Escolhi dois salões de beleza situados em dois bairros vizinhos para realizar minha pesquisa: Liberdade e Baixa de Quintas. Liberdade é o bairro com o maior número de população que se declara afrodescendente em Salvador e é também conhecido como o segundo mais populoso (entre 400.000 e 600.000 pessoas). O primeiro salão, onde tive autorização para realizar minha pesquisa, me indicou o segundo estabelecimento, localizado no bairro Baixa de Quintas.

Considerei duas categorias centrais de salão de beleza: os “não-especializados” em cabelos crespos, que realizam todo tipo de tratamento químico para cabelos, alisamentos e diversos cuidados estéticos; e os salões afro, especializados em cabelos crespos e penteados de inspiração africana. Priorizei a pesquisa feita nos dois salões mencionados acima, não-especializados em cabelos crespos.

 

A beleza em construção

Coloquei o corpo como um dos fios condutores de uma análise dos processos histórico e sociológico da formação do povo brasileiro. Em diferentes culturas, significados e comportamentos se inscrevem no corpo. Há muitas formas de se conceber o corpo no Brasil, física e culturalmente. A influência do clima e da geografia contribui para a importância que lhe é dada, em algumas regiões mais que em outras. As praias, assim como os salões de beleza, são locais de construção da beleza corporal. Morar em cidades litorâneas pode reforçar o valor dado à aparência física, bastante reconhecida e valorizada em Salvador.

De acordo com nossa história, é possível constatar que a cor da pele esteve diretamente ligada à ascensão social entre o final do século XIX e o começo do século XX, em especial no período pós-escravidão. A mestiçagem se desenvolveu em paralelo a um ideal de embranquecimento da população brasileira com a adoção de valores da aristocracia européia pelo Brasil, que reforça uma hierarquia social também baseada na cor da pele, no formato do rosto e na textura dos cabelos. Mestiços ganharam, pouco a pouco, uma relativa importância social em detrimento dos negros, que têm a pele mais escura (aqui, faço referência a mestiços como pessoas nascidas da miscigenação entre negros e brancos). Uma verdadeira nova categoria de indivíduos estava sendo estabelecida pelas autoridades brasileiras, e dentro dela os mestiços se aproximavam da “comunidade branca”. É importante ressaltar que a miséria e carência latentes e estruturais da maior parte da população, o concubinato e a concorrência pelo controle da mão-de-obra também estão na origem da mestiçagem na América Latina.

Durante a primeira metade do século XX, a pele mais escura indicava o trabalho duro sob o sol, a pobreza, a insalubridade dos bairros populares e a promiscuidade em locais miseráveis de prostituição. A pele pálida, por sua vez, era sinônimo de prestígio social e evocava conforto, tempo livre e filiação europeia. “A raça branca serve de modelo maior aos preceitos de beleza e saúde”.

Mudar sua aparência através do alisamento dos cabelos era reflexo da valorização da(s) aparência(s) física(s) estabelecida(s) por uma população branca. A contar da época colonial e passando pela instauração destas políticas de branqueamento, a cor da pele é um elemento importante que está na origem de diversas mudanças corporais. O alisamento é uma delas.

Os cabelos crespos foram conhecidos como cabelos “difíceis” por alguns séculos, e ainda o são. Essa é uma opinião bastante conhecida e reproduzida por uma parte importante da população de Salvador (e segue além pelo nosso país). Como “filha” da cidade e dona de uma vasta cabeleira crespa, eu sei bem do “rico” repertório de registro semântico que faz menção a este tipo de cabelo. Cabelos crespos como “ruins” é a forma mais frequente de referenciá-los. Ter cabelos “duros” ou “difíceis” é bastante associado a ter cabelo “ruim”. Percebidos como um problema que precisa de solução dentro do processo histórico, político e cultural brasileiro, o cabelo crespo sempre foi considerado um elemento importante de reforço da negritude e de referência às culturas africanas. Neste processo de desenvolvimento histórico, sobretudo após a abolição da escravatura, atribuir um lugar social ao negro ainda constitui uma questão de luta e debates intensos.

Neste sentido, é bastante importante trazer para cá mais deste registro semântico. Cabelos crespos podem também ser “rebeldes” e “amansá-los” é uma solução. O uso destas palavras pode ser bastante revelador de uma relação entre natureza e cultura. O cuidado exigido pelos cabelos crespos seria algo complicado para seguir no domínio das práticas humanas. É preciso, então, domesticá-los. Muitos estudos sobre a natureza e sua apreensão pelas sociedades mostram que o homem enquanto indivíduo tem a tendência a controlar aquilo que considera “contratempos” naturais e as determinações do instinto. Em sociedades mais tradicionais, a tendência é de se reconhecer como parte de um conjunto mais vasto que não necessariamente deve controlar o ecossistema dentro do qual se está inserido, e que discriminações entre humanos e não-humanos é algo muito mais raro.[6] Neste caso, se a referência aos cabelos crespos repousa em visões que o aproximam do conceito de domesticação, eles se tornam objeto de discriminação social, colocados do lado da “natureza”. É preciso que obedeçam a um modelo de beleza adequado à essa sociedade.

Cabelos bem cuidados ou arrumados não carregam necessariamente em si um peso pejorativo. Cabelos arrumados possuem aspecto agradável e são aprovados pela maioria das pessoas. Entretanto, a palavra pode ser imbuída de negatividade: para muitas mulheres, cabelos lisos são mais arrumados do que cabelos cacheados ou crespos, o que justifica o alisamento. Em muitos casos, “arrumado” é adjetivo para o cabelo liso. Os cuidados do universo do alisamento seriam uma forma de domesticar e adaptar ao mundo moderno a parte ameaçadora da natureza.

As técnicas empregadas para o alisamento e cuidados corporais são verdadeiras fontes de análise. Marcel Maus0, antropólogo francês, dizia que o corpo é construído culturalmente e que seus atos são formados pela autoridade social: “é graças à sociedade que há uma intervenção da consciência”.As técnicas corporais, carregadas de sentidos, são transmitidas entre diferentes gerações e culturas, permitindo localizar e identificar grupos no tempo e no espaço.

Pouco a pouco, a técnica torna-se subordinada às indústrias e ao poder econômico, influenciando a indústria da beleza. O saber técnico do alisamento desenvolveu-se de acordo com a história da construção do corpo e de seus padrões de beleza no país e novas necessidades em matéria de alisamento foram criadas.

Decidi dividir as técnicas de alisamento em duas: técnicas químicas e não-químicas. A ideia não é entrar no detalhe de cada uma, mas enumerá-las para ilustrar sua importância na sociedade.

As técnicas de alisamento químicas encontradas foram:

  1. Alisamento por hidróxido de sódio;
  2. Alisamento por guanidina;
  3. Uso de amônia;
  4. Escova progressiva ou definitiva;
  5. Retoque;
  6. Formol (proibido no Brasil desde 2005).

Dentre as técnicas de alisamento não-químicas, destaquei as seguintes:

  1. Escova;
  2. Chapinha;
  3. Bóbis;
  4. Meias colantes bastante aderentes (para pés ou pernas);
  5. Ferro de passar.

O alisamento por químicas supõe que o cabelo esteja sujo antes e durante a aplicação para proteção do couro cabeludo. Muitas mulheres também reforçam essa proteção usando cremes hidratantes na base dos cabelos. A sujeira associada ao alisamento é um ponto bastante importante aqui. Apesar de encarada como um passo natural dentro do processo de alisamento, a relação com a sujeira se estabelece no dia-a-dia dessas mulheres de uma forma específica.

Ainda em relação a sujeira, os cabelos não são lavados com a mesma frequência de antes quando se faz frequentemente a escova e a chapinha para a manutenção do liso. O cabelo crespo é frequentemente associado ao sujo no discurso de muitas mulheres (apesar de o cabelo alisado agregar de fato esta característica, e não o cabelo crespo). O uso de cremes hidratantes é bastante associado à manutenção do crespo e isso causa a impressão de cabelos úmidos por mais tempo, que acumulam resíduos e são consequentemente percebidos como sujos. A questão, aqui, é de manter os cabelos úmidos ou excessivamente hidratados com a intenção de deixá-los com menos volume ou com os cachos mais definidos. Mulheres que mantêm seus cabelos crespos mais naturais (com um estilo black power por exemplo) não enfrentam esse tipo de problema. Novamente, a autoestima de assumi-los como são está no centro da questão.

O efeito do alisamento obtido pelas técnicas não químicas é bem mais rápido e com resultados considerados mais eficazes. As técnicas químicas tratam os cabelos através do tempo: quanto mais produtos químicos forem aplicados, sempre respeitando uma frequência e disciplina, mais o couro cabeludo desenvolverá raízes lisas. Combinar técnicas, portanto, é bastante freqüente para muitas e a melhor forma de manter os cabelos sempre lisos.

O alisamento requer um grande esforço para a obtenção do resultado desejado. É preciso ter tempo (para a aplicação de produtos químicos o processo pode durar até 2h30) e fazer concessões do tipo “não ir sempre à praia” ou à piscina (relembro que estamos falando de Salvador), estar mais atenta à sua transpiração (sobretudo mulheres que transpiram em excesso), abdicar de reuniões ou festas caso “o cabelo não esteja bem alisado”, levar em conta as condições meteorológicas (chuva, calor excessivo), concordar com o fato de que a prática do alisamento vai estragar (muito) os cabelos ao longo dos meses e anos… estes fatores parecem implicar, efetivamente, em uma “domesticação” do próprio corpo e dos hábitos para se chegar à uma nova aparência. Nestes casos, é esclarecedor o que disse Neusa Santos Souza sobre o reconhecimento do negro no Brasil: “o negro só pode ser reconhecido socialmente à medida que ele esquece sua identidade”.

 

Contraponto

Cabe aqui um pouquinho de outra relação com os cabelos crespos, apesar de não constituir o objeto principal deste texto. Para muitas mulheres, preservar seus cabelos crespos é motivo de orgulho e autoestima. Ao lado do bairro da Liberdade encontra-se o bairro do Curuzu, onde se localiza a sede do Ilê Aiyê, uma das mais importantes associações carnavalescas e culturais em Salvador pela valorização das culturas negras. O trabalho do Ilê Aiyê é bastante permeado pela importância da reivindicação de uma identidade negra ou afro-brasileira, de se assumir negro em uma sociedade que se constituiu de forma discriminatória em relação a essas populações. Reivindicar-se negro pode evidenciar o corpo através de roupas, acessórios e penteados de inspiração africana. Trazer em si mesmo elementos que se referem às culturas africanas reforça o vínculo com essas culturas.

É importante relembrar do caráter político das lutas contra o racismo a partir dos anos 1960 nos Estados Unidos. Estas lutas se impunham em relação a qualquer ideia de moda que negros que foram referência na militância política, artes e cultura ajudaram a colocar em evidência (Rosa Parks, Angela Davis, Jimi Hendrix, entre outros). Nos EUA, como aqui no Brasil, movimentos negros nasceram e ganharam força a partir deste momento (o Ilê Aiyê é um exemplo, fundado em 1979). Elementos da negritude podem ser considerados como parte da moda atual e isso sem dúvida reforça uma determinada aceitação e admiração social. Porém, assumir seus cabelos crespos é assumir a si mesmo e assumir invariavelmente todo o esforço feito por homens e mulheres que militaram pelos direitos dos negros e sofreram forte discriminação.

A indústria estética, em paralelo, também considera as mudanças culturais das sociedades e desenvolve produtos para a manutenção dos cabelos crespos. Alguns penteados, como tranças, são um meio de garantir respeito por seu próprio corpo e seus cabelos crespos. É uma forma de assumi-los e protegê-los sem agredi-los. O mesmo vale para o penteado black power, no qual os cabelos são usados soltos e têm a parte superior cheia, dando um formato redondo ao contorno dos cabelos acima da cabeça. Este é um penteado que começou a se dissociar da pele negra com o advento dos movimentos negros nos EUA e no Brasil, seguidos de uma evolução posterior do estatuto do negro nestes países.

 

Mudando sua aparência: causas e consequências

Os cabelos são considerados em diversas culturas como elementos marcantes da construção da beleza feminina. Eles permitem caracterizar visualmente e muito rapidamente a mulher. Definido por muitos como “a moldura do rosto”, o cabelo pode dar informações sobre as origens, pertencimento a grupos sociais e hábitos de uma pessoa, aproximando ou afastando indivíduos enquanto elementos de identidade corporal. Eles possuem uma grande capacidade de expressão simbólica vinculados a um contexto sociocultural.[11]

A mulher pode e deve decidir o que transmitir para o outro enquanto características de sua aparência física. Ela pode ansiar por uma maior aceitação social, procurando outra posição também através de sua aparência. Todos nós, mulheres e homens, estamos sujeitos a isso e o fazemos continuamente. Em Salvador, cidade onde a maioria da população se autodeclara negra ou afrodescendente, é mesmo impressionante a preponderância de mulheres com cabelos alisados. Este contínuo processo de alisamento contribui para a percepção do cabelo liso como bastante natural. Alisar os cabelos é percebido como uma forma de se colocar “em pé de igualdade” com mulheres que possuem cabelos lisos naturais. Trata-se de adaptar a aparência física para facilitar sua entrada e permanência em uma sociedade ou grupo.

Este ponto me parece de importância vital, pois me foi colocado em diversas situações onde o assunto era trabalho e empregabilidade. A vantagem do cabelo liso é o fato de que ali ele já é socialmente aceito, enquanto o cabelo crespo, em desvantagem, causa constrangimento a muitas mulheres que se veem compelidas – ou são solicitadas – a alisarem sem cabelos, tornando este processo parte de suas obrigações profissionais. Ouvi mulheres dizendo que os cabelos crespos possuem uma “aparência agressiva”, o que as impede de conquistar posições profissionais. Uma das motivações que leva a mulher a alisar seu cabelo, portanto, passa pelo acesso ao emprego e conquista de melhores posições profissionais.

Dentre outras motivações, há uma questão extremamente relevante em relação ao alisamento: a liberdade feminina. Para além do racismo estrutural brasileiro, é importante considerar a trajetória feminina dentro dos direitos cívicos e morais no Brasil. É necessário levar em conta que, durante séculos, mulheres negras e mestiças foram discriminadas de diversas formas e que ao longo desta trajetória também foram forçadas ou estimuladas a alisarem seus cabelos (a princípio, com o ferro de passar). Relembro que a formação de toda sociedade se reflete no presente e que, hoje, o alisamento vai além da questão da não-aceitação. Ele é também um processo estético acessível que pode ser feito pela decisão da própria mulher, a qualquer momento, e que a depender da técnica empregada, ele pode ser rapidamente desfeito. Muitas mulheres negras que têm uma forte consciência de sua importância social e política, no Brasil e nos EUA, acreditam e defendem o discurso de que a valorização do esforço individual é muito mais importante do que a aparência física em si, o que tira o peso do processo de alisamento.

Considerando estas inúmeras influências sobre a vida e aparência física da mulher de hoje, o que ela procura, finalmente? O alisamento pode se inscrever em duas dinâmicas diferentes: uma associada às influências que valorizam, primordialmente, a figura da mulher branca e suas características físicas e, portanto, ligada a princípios racistas. A mulher estaria influenciada por um ideal de aproximação de outra aparência física, a da mulher branca com cabelos lisos.

A outra dinâmica seria da ordem da escolha e da possibilidade de mudar sua aparência física com freqüência, o que também tem influência da moda. A mulher sempre teve a intenção de fazer-se remarcar de alguma forma, independente das barreiras culturais de sua época. Essa dinâmica é mais vinculada a um sinal de liberdade da mulher e doravante mais viável através da emancipação feminina a partir dos anos 1960.

Mas, é necessário se perguntar se a dinâmica do alisamento se inscreve sempre em uma ou outra das alternativas descritas acima. O fato é que existem limites bastante sutis em cada uma das nossas escolhas. Como definir escolhas feitas sob a influência de questões tão naturalmente complexas?

Podemos levar em conta que a maioria das decisões feitas em relação ao alisamento (e também a outras práticas estéticas) acontece dentro dos salões de beleza. As mídias exercem uma poderosa influência neste caso (programas de TV, revistas, cartazes), mas também o desejo de pertencer a um grupo social, como já foi pontuado aqui. Como contraponto, algumas mulheres negras afirmaram ter parado com o alisamento porque foram convencidas de que era preciso estar visualmente inscritas no que se entende como “ser negro”.

A opinião masculina também é um fator de muito peso. Diversas mulheres manifestaram esse ponto como uma preocupação, considerando a importância de agradá-los, parceiros fixos e potenciais. Muitas mulheres consideram que um parceiro sexual (em geral de pele mais branca) pode valorizar cabelos “mais leves” (através dos quais é mais fácil deslizar os dedos)…

Por fim, a própria competição entre mulheres é sem dúvida a considerar. Muitas de nós nos produzimos para um alguém que reside na figura de outra mulher. O seu eu feminino não está necessariamente sempre em você: em diversos casos, muitas de nós colocamo-lo fora de nós mesmas.

Gomes diz que se “o cabelo crespo é imediatamente associado ao corpo do Negro […], alguns Negros poderão interiorizar a ideia de que, desde que a gente muda a textura crespa do cabelo eles chegarão, de maneira simbólica, a embranquecer seus corpos, logo, a ‘se embranquecerem’. A força dessa mensagem é grande a ponto de ‘contaminar’ e confundir nosso próprio olhar, desviando nossa atenção de questões que foram construídas dentro do contexto da cultura e das relações de poder, no plano físico e corporal”.

Mudar sua aparência através do alisamento pode ser uma atitude subjetiva, não intencional. Sua relação com seu corpo refletirá um imaginário social. Mudar estes valores é uma construção diária, gradual e lenta, de coragem e aceitação. É possível começar, por exemplo, pela adoção de uma nova atitude de cabeleireiros, detentores e transmissores do saber técnico na área. Não se pode esquecer, entretanto, que isso entraria em conflito com a tendência do mercado cosmético que estimula o alisamento e os cabelos lisos. Neste sentido, promover outros padrões estéticos e de beleza em esferas que vão além dos salões e ambientes afro é absolutamente necessário e bem-vindo.

Estamos em 2015 (relembro que meu trabalho de pesquisa foi concluído em 2009) e é possível dizer que encontro mais pessoas nas ruas portando cabelos naturais do que antes, mesmo em Salvador. Há também um número bem maior de pessoas usando e compartilhando experiências em redes sociais, e é mais fácil ler e ouvir mulheres que têm tido mais e mais coragem para assumirem seus cabelos crespos e cacheados, mulheres que se livram de uma culpa ilusória, mulheres que aprendem a confiar mais em si mesmas e trabalharem mais suas autoestimas, mulheres e pessoas que têm se amado mais. Isso é admirável. Porém, as mesmas questões, conflitos e fantasmas persistem sim e são muito, muito atuais. É impressionante como esses padrões de beleza associados aos cabelos lisos são fortes e marcantes em nossa(s) sociedade(s) ocidental(ais). Sugiro, para aqueles que custam a acreditar em tais realidades, que tentem desenvolver suas capacidades de empatia e a se colocarem no lugar do outro. Que busquem e escutem pessoas que enfrentaram ou enfrentam tais fantasmas. Tenho certeza que cada um de nós carrega o seu… mesmo que não o assuma ou não consiga enxergá-lo.

A construção da identidade (uma noção absurdamente complexa) de uma pessoa está, sem dúvida, implicada neste processo. O corpo não é uma entidade finita: ele está sempre em construção e transformação. Existem, portanto, diferentes “categorias” de pessoas que se constroem ao longo do tempo, segundo interesses e sentimentos comuns.  O cabelo e o penteado podem servir para esconder ou afirmar um pertencimento a uma dada categoria social. É também possível ler todo este processo do ponto de vista da identidade da qual se busca fugir: o que se evita quando se alisa os cabelos?

 

Fechando uma questão tão aberta…

Construir a aparência física pela negação de seu corpo pode ser a ocasião para uma pessoa de se transformar. O alisamento é um fenômeno que possibilita a mudança da aparência física de uma mulher. O número de técnicas de alisamento e o vínculo deste procedimento com diversas problemáticas sociais reforça sua importância, dadas suas recorrência e atualidade. Ele reforça a negação de cabelos crespos dentro desta sociedade, que tem em sua origem o profundo histórico do racismo.

Qualquer estigmatização pela aparência pode conduzir a uma não-aceitação de si mesmo. A negritude pode ser, sim – e é – usada contra o negro, inclusive como reforço de outros preconceitos que estão geralmente associados à condição de pobreza e de poucas oportunidades na vida. A aparência física pode então ser objeto de um ritual, uma transformação de si mesmo, com o objetivo de conquistar mais aceitação e adequação social pelo indivíduo.

 

Quando não se tem a aparência física questionada, contrariada, é preciso sensibilidade e humanidade para se colocar no lugar daqueles que veem, escutam e, sobretudo, aprendem a acreditar que seu corpo e sua presença física são inadequados. Sua existência, atravessada por tais questionamentos, será no mínimo desarmoniosa, pois foi marcada pela rejeição. É preciso trabalhar a estima de si mesmo buscando sua essência e sua verdade.

Quando não se aprende a ser, simplesmente não se é. É, sim, simples assim. Para aqueles que pregam que tudo isto é exagero, inflamação, recalque ou racismo contra si mesmo: eu sinto muito, a ignorância dos fatos e a insensibilidade os rodeia. Eu sinto muito, mesmo, porque são estas pessoas que passarão a vida tentando apontar para o outro que ele não deve se amar como ele é. São estas as pessoas que necessitam justificar alguma superioridade que preenche um vazio qualquer, que ignoram anos de repressão daquilo que é diferente do que acreditam ser o certo. Estas pessoas acreditam que para se estar em algum lugar, é preciso no mínimo alterar a natureza do outro.

Quando não se sente algo na própria pele, convém se informar a respeito antes de julgar. A dor do outro sempre dói menos. Então, quando algo doer em você, procure entender que todos nós sentimos, sofremos e temos prazer.


Ananda Melo King é formada em comunicação social, pós-graduada em gestão de processos comunicacionais, mestre em antropologia cultural pela Université de Strasbourg e atualmente trabalha na área de responsabilidade social.

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