“Perdi meu emprego por ser negra” conta gerontóloga Thádia Marques

A gerontóloga Thádia Marques, 30 anos, de São Paulo, deixou o antigo trabalho em um laboratório de exames só para mulheres para começar em uma nova empresa como supervisora de cuidadores de idosos. Em seu segundo dia exercendo a nova função, ela descobriu que alguns clientes não aceitavam ser assistidos por pessoas negras. Tentou negociar com o novo chefe para que outra profissional atendesse essas pessoas, mas teve uma grande decepção: foi demitida apenas por ser negra.

por Kamille Viola no Marie Claire

A gerontóloga Thádia Marques (Foto: Acervo pessoal – Revista Marie Claire)

“Eu era funcionária de um laboratório de exames só para mulheres. Gostava do lugar, mas não me identificava muito com o trabalho. Até que apareceu uma oportunidade de emprego que tinha tudo a ver com a minha formação de gerontóloga. E, além de tudo, a proposta era mais interessante financeiramente e resolvi aceitar. Uma amiga com quem tinha trabalhado alguns anos antes, a Marcela*, estava saindo da empresa e perguntou se eu conhecia alguém que pudesse se interessar pelo cargo. Eu falei que gostaria de tentar e a Marcela passou o meu contato para o chefe dela, o André*, gestor da empresa de cuidadores de idosos.

O emprego era de supervisora desses funcionários: quem entrasse teria que tomar conta da escala, organizar a rotina de trabalho e visitar todas as famílias pelo menos uma vez por semana para ver se os cuidadores estavam cumprindo com o combinado, se estavam tratando direitinho dos idosos, como estava a relação com a família, essas coisas.

A entrevista foi no dia 14 de agosto. O André gostou de mim e disse que eu tinha sido aprovada. Pedi demissão do outro emprego no dia seguinte. Cinco dias depois comecei nessa nova empresa e já fizemos uma visita a uma possível cliente. No segundo dia de trabalho, fiquei no escritório cuidando de questões administrativas acompanhando a funcionária que iria sair. Ela me mostrou a pasta onde ficava os prontuários dos pacientes para eu saber mais sobre eles e suas famílias. Foi aí que vi que alguns desses prontuários informavam que algumas dessas famílias eram preconceituosas com pessoas negras.

Gelei por dentro. Perguntei à Marcela como era aquilo e ela respondeu: ‘Infelizmente eles são preconceituosos. Nesses casos, a gente evita mandar cuidadoras negras para protegê-las’. Diante daquela informação, fui perguntar ao gestor como proceder porque eu, como uma pessoa negra, teria que fazer visitas a essas famílias sabendo que não seria bem-vinda e correndo o risco de ser destratada. Foi então que ele respondeu: ‘Eu vovou com você nessas visitas. Como você é supervisora das cuidadoras e vai precisar ir pouco lá, eles não vão achar ruim e vão te respeitar. Se fosse cuidadora, eles não iriam gostar”.

Eu fiquei indignada com essa informação: como é que eles aceitavam essa condição, essa exigência, essa discriminação? O fato da empresa ser conivente já me deu uma desanimada. Fiquei bem receosa e disse: ‘Olha, diante de toda a minha vivência sofrendo preconceito, acho que seria melhor eu não ir na casa dessas famílias. Se você puder ver com a Adriana* (que cuidava da parte administrativa) para ela ir no meu lugar, aí eu ficaria com as outras famílias’. Das 20 famílias clientes da empresa, três delas eram as racistas. Eu propus essa troca para não prejudicar nem a mim, nem a empresa. Dos três funcionários que ficava dentro da empresa, eu era a única negra.

O André disse que iria falar com a Adriana, mas frisou: ‘É importante que você tenha contato com as cuidadoras dessas famílias (racistas) porque você vai precisar tratar da escala deles’. Respondi que tudo bem, que eu só não queria ir até lá porque estava com receio e não queria me expor a uma situação constrangedora. Eu sabia que a empresa não iria segurar uma situação ruim. A corda sempre arrebenta para o lado mais fraco.

Ele disse que iria pensar em uma solução e dias depois veio falar comigo. Havia refletido muito e que achava melhor a gente não prosseguir com o meu trabalho, que iria me desligar e que pagaria meus direitos. Imaginei que ele pudesse ter essa atitude, apesar de eu ter proposto alternativas. Como eu já tinha saído de um trabalho, eu precisava do dinheiro. Queria ficar mais pela mais pela necessidade do que por concordar com as políticas da empresa.

Falei para o André que se eu soubesse que existiam essas famílias preconceituosas no momento da entrevista, eu teria recusado o trabalho. Depois a gente conversou por telefone e falei que saí de lá muito prejudicada, tanto financeiramente como emocionalmente. Ele pediu desculpas e disse que não tinha como medir a dor quanto ao preconceito que eu passo e, que quando me contratou, não lembrou dessas famílias.

E, no dia em que comecei nesse emprego, eu tinha uma outra entrevista, mas deixei de ir. O André sugeriu que eu tentasse voltar para o meu antigo emprego, só que não tinha mais como. Sigo desempregada por causa do racismo, infelizmente.

Essa empresa é uma franquia. Conversei com uma amiga que também é gerontóloga e que trabalhou em uma das unidades e ela contou que havia outros casos lá. Não é um caso isolado. Moro com a minha mãe e com a minha irmã na Zona Norte de São Paulo. Trabalhei dois dias, mas consegui negociar para que o André me pagasse pelo menos metade do contrato de experiência. Estou me virando. A minha família me ajuda, na medida do possível.

Eu já tinha passado por situações de racismo no trabalho, mas de forma velada. Já aconteceu, por exemplo, de pessoas não acreditarem que eu era a gestora de uma empresa por ser negra. Mas ver o racismo escancarado foi uma dor. Eu fiquei tão abalada emocionalmente que adoeci. Dá um certo desespero de ver o quanto isso é próximo. ‘Apanhamos’ todos os dias e tentamos nos reerguer. Dois mais ainda de ver que, apesar de toda a informação, dos movimentos pela luta da diversidade, ainda existe tanto preconceito.

No começo, eu fiquei com medo, me senti bem desamparada, sem saber o que fazer. É difícil as pessoas entenderem o quanto é isso grave, o quanto dói. Até que fiz um post em um grupo do Facebook só com mulheres pedindo que me orientassem sobre o que fazer. Muitas advogadas entraram em contato comigo e estão me orientando. Fiquei melhor com todo esse apoio, fui me fortalecendo. Ao longo dessas últimas semanas eu consegui me reestabelecer.

Acho que tive um papel importante nisso tudo para alertar. Eu acho que tenho que fazer alguma coisa tanto por mim, por ter sido prejudicada, como por outras pessoas que devem passar por discriminação no trabalho e que não têm voz, que não têm oportunidades de tomarem uma atitude. Eu quero mostrar que nenhum empresa pode fazer isso com ninguém por causa da cor da pele. Vou tentar fazer a minha parte – mesmo que seja um trabalho de formiguinha- para acabar com episódios como esse”.

* Esses nomes foram trocados

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